domingo, 29 de dezembro de 2019

O FIM DA MINHA PORKY

O FIM DA MINHA PORKY

Acompanhou-me para toda a parte. Ao meu lado aguentou confidências, intempéries, batalhas, maus-tratos, e quedas. Perdeu a espiral de arame e soltaram-se-lhe as folhas. Das capas, cor de lacre, não restavam mais que tiras. A Porky, que soube ser uma elegante agenda francesa, ficou reduzida a um monte de papéis e papelinhos presos por um elástico, e andava toda cortada e esfarrapada e suja de tinta e de terra.
Levei tempo a decidir-me. Eu amava aquela gorda desmanchada. Explodia-me nas mãos cada vez que lhe pedia uma direcção ou um número de telefone.
Nenhum computador teria podido com ela. A Porky estava a salvo de espiões e de polícias. Nela eu encontrava sem esforço o que procurava: sabia decifrá-la manchinha a manchinha e pedaço a pedaço.
Entre o A e o Z, a Porky continha quarenta e oito anos da minha vida.
Nunca a tinha passado a limpo. Por preguiça, dizia, mas era por medo.
Hoje matei-a.
Alguns nomes custaram-me a sério. À maior parte já nem os reconhecia. O bloco estava cheio de mortos; e também de vivos que já não têm nenhum significado para mim.
Confirmei que, nestes anos, quem tinha morrido várias vezes e várias vezes nascido era eu.

Vitor Jorge

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Comentários do conteúdo: Outro texto em que me revejo e que gostaria de ter escrito. Abraço.
José Cipriano Catarino. (grande amigo e escritor português)