terça-feira, 5 de abril de 2022

A MINHA PRIMEIRA GREVE

MEMÓRIAS DO PASSADO PRESENTE

A primeira greve da minha vida deixou-me cicatrizes. Geralmente, os conflitos do ensino não me preocupavam muito, por mero desconhecimento de causa. Mas a F. P. A. tinha decretado dois dias de greve, os alunos aderiram e eu nem sequer perguntei qual era o motivo. Só pensei que, já que não ia às aulas, poderia aproveitar para devolver ao Lopes um monte de livros que ele me tinha emprestado nos últimos meses. O Lopes vivia ali próximo, na Calçada do Grilo, por isso pus vários Freud, Jung e Adler na pasta que levava diáriamente para as aulas. Pus outros tantos num saco, apanhei um eléctrico, e saí na paragem próxima da escola.
Lentamente (nestas circunstâncias os livros pesam), dirigi-me à Calçada do Grilo. Ali próximo, distingui a figura inconfundível do Tomás, conhecido como o Campeão (tinha ganho várias competições de atletismo para jovens). Fez-me sinal e começou a aproximar-se. O Campeão era bom atleta mas mau aluno. Tinha mais dois anos do que eu, todavia era repetente e estava na minha turma. Diziam que era comunista e era um eficaz organizador de paralisações, greves, protestos, manifestações, etc. Decorria o ano de 1972. Esperei por ele, carregado de livros. Mas quando finalmente chegou ao pé de mim, gritou:
Traidor! Fura greves!
E sem dizer água vai, encaixou-me um tremendo murro na maçã direita do rosto que ficou logo como um farol. Enquanto me baixava para pousar no chão a minha carga de livros e poder defender-me, consegui gritar-lhe:
Então Campeão, o que é que tu tens? Estás doido? Eu não sou, nunca fui traidor!
Ai não? E onde é que tu vais com isso tudo? Não vais para as aulas?
Não, Campeão, vou devolver estes livros ao Lopes, que mos emprestou e vive aqui perto.
Mostrei-lhe a minha carga para que visse que não eram livros escolares. O Tomasito ficou roxo.
Desculpa, magrinho. Como é que eu pude fazer-te isto se sou tão teu amigo, e com tudo o que tu me sopras durante as aulas. Desculpa magrinho, a sério, desculpa.
Desculpei-o, apesar da minha maçã do rosto continuar a fazer uma sinalização que parecia o farol da entrada da barra do porto de Lisboa.
Insistiu muito para me oferecer uma imperial e fomos à cervejaria defronte. Aí, como uma prova de confiança, contou-me a sua história. O pai batia na mãe diáriamente.
E o que é que ela faz?
Chora, só isso.
E tu?
Eu puxo-o pelo braço e afasto-o, mas acaba por me bater também e por me atirar ao chão. 
Mas Tomasito, com esse corpo todo que tens... 
O meu pai é muito maior do que eu. Além disso não posso nem quero bater-lhe. Só quero é que ele não bata na minha mãe. 
E porque é que ele lhe bate? 
Diz que ela teve um amante (ele diz <<um querido >>) aí há vinte anos atrás e que até desconfia (isto só acontece quando ele vem bêbado) que não é meu pai. Como é que não é? Somos parecidos como, não digo como duas gotas de água, mas como duas gotas de aguardente. Por isso é que tenho tanta dificuldade em estudar. Com um ambiente destes deves imaginar como é difícil concentrar-me. 
Pagou as cervejas e propôs-me (já se tinha convencido de que eu não era um traidor) que nos aproximássemos da escola. Antes passámos em casa do Lopes e deixei-lhe os livros, agora com mais um motivo: não desencadear mais suspeitas infundadas. O Lopes olhou espantado para a minha maçã do rosto mas não disse nada. 
Em frente à escola estavam cerca de duzentos estudantes que gritavam palavras de ordem. O trânsito estava cortado e ouvia-se considerável concerto para buzina e orquestra. Foi aí que apareceu um batalhão de pides, com a determinada intenção de pôr termo ao evento, batendo sem dó, e prendendo aliatoriamente. Começaram todos a correr que nem gazelas, mas eu devo ter corrido como uma tartaruga, resistindo sempre, apanhei uma espadeirada nas costas, um rasgão na camisa, e um par de algemas nos pulsos. Enquanto era empurrado com incrível "meiguice" para uma viatura, já não consegui vislumbrar o Tomasito nem o Lopes. Passei duas noites e dois dias no "hotel" da António Maria Cardoso, submetido a interrogatórios e sevícias dolorosas quanto injustas, nesta que foi a minha estreia na arte da inocência. 
A meu favor contava um previlégio natural: aprendia rapidamente. A partir daí continuei a minha luta, voltei por diversas vezes à António Maria Cardoso, paguei caro os meus silêncios nos interrogatórios. Resistente, saí sempre vencedor, apanhei-lhes a estratégia da covardia, e a partir daí cresci e apareci, incapaz de julgar um meu semelhante. 

Vitor Jorge 

"É o indivíduo que não está interessado no seu semelhante quem tem as maiores dificuldades na vida e causa os maiores males aos outros. É entre tais indivíduos que se verificam todos os fracassos humanos".

Alfred Adler

terça-feira, 24 de novembro de 2020

MINHAS MEMÓRIAS

MEMÓRIAS DO MEU PASSADO

Juan Gelman contou-me que uma senhora brigou a guarda-chuvadas, 
numa avenida de Paris, contra uma brigada inteira de funcionários municipais. Os 
funcionários estavam a caçar pombos quando ela emergiu de um incrível Ford 
bigode, um carro de museu, daqueles que funcionavam à manivela; e brandindo 
seu guarda-chuva, lançou-se ao ataque.
Agitando os braços abriu caminho, o seu guarda-chuva justiceiro 
arrebentou as redes onde os pombos tinham sido aprisionados. Então, enquanto os pombos fugiam em alvoroço branco, a senhora avançou a guarda-chuvadas contra 
os funcionários.
Os funcionários só atinaram a se proteger, como puderam, com os 
braços, e balbuciavam protestos que ela não ouvia: mais respeito, minha senhora, 
faça-me o favor, estamos a trabalhar, são ordens superiores, senhora, por que não vai bater no presidente da Câmara? Senhora, que bicho lhe mordeu? Esta mulher enlouqueceu...
Quando a indignada senhora cansou o braço, e apoiou-se numa parede para tomar fôlego, os funcionários exigiram uma explicação.
Depois de um longo silêncio, ela disse: o meu filho morreu.
Os funcionários disseram que lamentavam muito, mas que eles não tinham culpa. Também disseram que naquela manhã tinham muito que fazer, a senhora compreende...
o meu filho morreu, repetiu ela.
E os funcionários: sim, claro, mas que eles estavam ganhando a vida, que existem milhões de pombos soltos por Paris, que os pombos são a ruína desta cidade...
Cretinos, fulminou a senhora.
E longe dos funcionários, longe de tudo, disse:
o meu filho morreu e  transformou-se em pombo.
Os funcionários calaram-se e ficaram pensando um bocado. Finalmente, apontando os pombos que andavam pelos céus e telhados e calçadas, propuseram:
Senhora: por que não leva o seu filho embora e deixa a gente trabalhar?
Ela ajeitou o chapéu preto:
Ah!, não! De jeito nenhum!
Olhou através dos funcionários, como se fossem de vidro, e disse muito serena:
Eu não sei qual dos pombos é meu filho. E se soubesse, também não ia levá-lo embora. Que direito tenho eu de separá-lo de seus amigos?

(Para quem desconhece: Juan Gelman foi um poeta, jornalista e tradutor argentino. Foi um dos mais importantes poetas da Argentina das últimas décadas, autor de mais de vinte livros e poemas, vencedor do Prémio Cervantes em 2007. Viveu exilado no período de 1975-1988.
Faleceu a: 14 de janeiro de 2014, México.) A minha modesta mas sentida homenagem ao amigo, ao homem, cheio de amor e verdades dolorosas e amizade na sua pureza cristalina.

Vítor Jorge

Cascais 1988.

terça-feira, 20 de outubro de 2020

A IDIOTICE EM SÍNTESE

A IDIOTICE EM SÍNTESE

Está linda, a rua. Nem frio nem calor. Um sol muito amarelo, mas morno. Uma brisa marinha que apenas move as bandeirinhas dos estabelecimentos que vendem gelados e as folhas douradas das árvores outonais. 

Gosto da minha cidade, sinto que de algum modo faço parte dela. Olho muitos homens e mulheres opacos, mesquinhamente calculistas, euforicamente míopes, de coração explosivo, mas imprevidente, que desfilam, cinco em cada cinco, deixando a sua avultada caridade na mão suja e estendida da gorda e prepotente aleijada, a mendiga única, a mendiga excepção que, mais tarde, com a sua impecável perna artificial, converter-se-á em florescente dona de vários imóveis e outros pecúlios excedentes, olho estes cultivadores da esmola, estes filantropos do vintém, e embora eu negue o meu contributo, sinto que de algum modo eles representam o meu país, porque todos queremos o céu como pechincha, o poder como pechincha, todos queremos que a vida nos saia mais barata que ao comum dos mortais, e para isso não importa se o meio é a burla, a esmola, a acomodação, a inválida promessa ou a falsa invalidez milionária.

Todos queremos alcançar a vantagenzinha, enganar alguém para salvar a honra, a única forma de adquirir consciência das próprias forças é cometer a mínima indecência que nos ponha ao amparo das mais agressivas de todas as suspeitas, a módica incorrecção que impeça aos demais falar da nossa idiotice, a insuportável idiotice do honrado. Uma coisa é ser bom e outra muito diferente é que tomem uma pessoa por idiota. Esta frase deveria estar inscrita nas notas e moedas do euro. 

O resultado é que no passado, em algum remoto passado desajeitado,todos fomos bons, porém agora que sabemos o segredo, deixámos de o ser para que os demais não nos tomem por idiotas. Com respeito a cada um, todos somos os demais, todos pretendemos tomar cada um dos outros por idiota. Mas como ninguém quer deixar-se tomar por idiota, a consequência é que todos somos iluminados, e estamos, portanto gloriosamente situados por cima desse ser hipotético, caduco, superado, inexistente, esse português em quem todos pensamos quando dizemos: uma coisa é ser bom...

Vitor Jorge
20 Outubro 2019
(Artigo de opinião in Jornal Tornado)

sábado, 22 de fevereiro de 2020

Aniversário 2020

52 amigas amigos desejaram-me parabéns no Facebook por ocasião do meu aniversário. Feliz. 

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

A DAMA DA NOITE

A DAMA DA NOITE

Conhecem-se, de madrugada, num bar.
De manhã, ele acorda na cama dela. Ela aquece café; bebem-no pela mesma chávena. Ele descobre que ela rói as unhas e que tem umas mãos lindas de miúda. Não dizem nada. Enquanto se veste, ele procura palavras para lhe explicar que não lhe poderá pagar. Sem olhar para ele, ela diz, como quem não quer a coisa:
Nem sei como te chamas. Mas se quiseres ficar, fica. A casa não é feia.
E ele fica.
Ela não faz perguntas. Ele também não.
À noite ela vai trabalhar. Ele pouco ou nada sai.
Passam os meses.
Uma madrugada, ela encontra a cama vazia. Em cima da almofada, uma carta que diz:
Queria levar comigo uma das tuas mãos. Roubo-te uma luva. Perdoa-me. Digo-te adeus e muito obrigado por tudo.
Ele atravessa o rio Minho, a partir de Vila Nova de Cerveira, numa tentativa de fuga para França. Poucos dias depois, é preso nos arredores de Barcelona. É preso por um acaso idiota.
O coronel insulta-o e bate-lhe. Levanta-lo pelos colarinhos:
Vais dizer-nos porque não tens documentos, para onde pensas que vais. Vais dizer-nos tudo. Ele responde que viveu com uma mulher em Vila Nova de Cerveira. O coronel não acredita. Ele mostra a fotografia: ela sentada na cama, nua, com as mãos na nuca e o longo cabelo preto a cair-lhe sobre o peito. 
Com esta mulher diz, em Cerveira. 
O coronel arranca-lhe a fotografia da mão e, de repente, explode de fúria, dá um murro na mesa, grita puta que a pariu, traidora filha da puta, vai-me pagar, desgraçada, esta sim vai-me pagar. 
E então ele dá-se conta. A casa dela era uma armadilha, montada para caçar tipos como ele. E lembra-se do que ela lhe disse uma tarde, depois do amor:
Sabes uma coisa? Eu nunca senti, com ninguém, esta ... esta alegria dos músculos. 
E pela primeira vez compreende o que ela acrescentou, com uma sombra estranha nos olhos:
Alguma vez tinha de me acontecer, disse. 
Foda-se! Eu sei perder. 

(Este facto aconteceu em 1970 quando muitos portugueses acossados pela ditadura de Salazar tentavam salvar a pele através da fuga pelas fronteiras portuguesas) 

Vitor Jorge 

domingo, 29 de dezembro de 2019

O FIM DA MINHA PORKY

O FIM DA MINHA PORKY

Acompanhou-me para toda a parte. Ao meu lado aguentou confidências, intempéries, batalhas, maus-tratos, e quedas. Perdeu a espiral de arame e soltaram-se-lhe as folhas. Das capas, cor de lacre, não restavam mais que tiras. A Porky, que soube ser uma elegante agenda francesa, ficou reduzida a um monte de papéis e papelinhos presos por um elástico, e andava toda cortada e esfarrapada e suja de tinta e de terra.
Levei tempo a decidir-me. Eu amava aquela gorda desmanchada. Explodia-me nas mãos cada vez que lhe pedia uma direcção ou um número de telefone.
Nenhum computador teria podido com ela. A Porky estava a salvo de espiões e de polícias. Nela eu encontrava sem esforço o que procurava: sabia decifrá-la manchinha a manchinha e pedaço a pedaço.
Entre o A e o Z, a Porky continha quarenta e oito anos da minha vida.
Nunca a tinha passado a limpo. Por preguiça, dizia, mas era por medo.
Hoje matei-a.
Alguns nomes custaram-me a sério. À maior parte já nem os reconhecia. O bloco estava cheio de mortos; e também de vivos que já não têm nenhum significado para mim.
Confirmei que, nestes anos, quem tinha morrido várias vezes e várias vezes nascido era eu.

Vitor Jorge

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Comentários do conteúdo: Outro texto em que me revejo e que gostaria de ter escrito. Abraço.
José Cipriano Catarino. (grande amigo e escritor português)

terça-feira, 26 de novembro de 2019

INVETERADOS

INVETERADOS             

A mentalidade não se adquire por decreto. Enquanto não fabricarmos o nosso próprio rastilho e a nossa própria pólvora, enquanto não adquirirmos uma consciência visceral, social, da necessidade da nossa própria explosão, do nosso próprio fogo, nada será profundo, verdadeiro, legítimo, tudo será uma simples casca, como agora é casquinha, só casquinha, a nossa tão apregoada democracia. O que leva muitos pulhas a afirmar impunemente que tem as mãos limpas, isso só se deve ao facto de o nosso conceito de higiene política deixar muito a desejar. Um povo que opta pelo nómadismo, apesar de saber ler e escrever, desconhece que a única transformação eficaz é obtida através da  cultura e educação política dedicada ao seu próprio desenvolvimento e progresso. Afirmamo-nos tão famosamente livres, e, no entanto, tão irremediavelmente encalhados, que seremos os últimos a compreender as lições da História, os últimos a abandonar o ritual de hipocrisia que só serve para inventariar corrupções, defeitos, fragilidades, e individualismos existenciais...

Vitor Jorge
25/11/2017