sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

GENTE QUE PASSOU

GENTE QUE PASSOU

Até então eu tinha vivido mais ou menos confinado a esta cidade da Horta e talvez por isso gostasse bastante dos percursos pedestres pelas ruas da mesma. Nessas alturas, detinha-me um bom bocado numa esquina qualquer, empenhado exclusivamente em observar a passagem das pessoas. A pressa de uns e a serenidade de outros, tudo constituía para mim uma novidade, uma descoberta. À medida que iam passando pela minha solidão, anotava mentalmente as suas peculiaridades e obsessões. As mulheres seduzidas pelas montras e pelas últimas novidades da moda, paravam fascinadas, certamente retendo na memória cortes, cores, modelos, preços. Depois iam-se embora disparadas, porque estavam sempre atrasadas para chegar a qualquer sítio. Os homens, mais definidos ou obsecados, quando iam comprar alguma coisa, entravam directamente na loja ou na papelaria, perdendo a possibilidade de observar os expositores, em cuja oferta não desperdíçavam o seu tempo.
Abundavam também os estudantes, de ambos os sexos, especialmente nas imediações do antigo liceu. Normalmente circulavam em grupos, com os rapazes a assediar as raparigas, e estas, de braço dado para se sentirem mais fortes, devolviam-lhes os piropos colectivos e as piscadelas de olho individuais com rejeições irónicas e cochichos apócrifos. Os transeuntes adultos às vezes entreolhavam-se, incomodados com essa lição de proveitosa frivolidade, cada um solidário com o aborrecimento do outro e esperando não encontrar de repente um filho seu, ou uma filha, entre aquela trupe de gente incómoda, tão barulhenta quanto alegre.
No meu miradouro, numa esquina qualquer (geralmente escolhia a da rua Cônsul Dabney), fui conhecendo os detalhes e matrizes do comportamento humano, e essa visão panorâmica chegou a transformar-se, para a minha inexperiente  natureza, num exercício apaixonante. Nessa época, com doze anos de idade, eu lia bastantes livros. Já tinha abandonado, havia algum tempo, a leitura de De Amicis, Verne e Salgary, e então dedicava-me a estabelecer as diferenças mais elementares entre as personagens de Dostoievski, Dickens ou Victor Hugo. Durante algum tempo estive obsecado em fazer comparações imaginárias entre os mendigos da literatura e os da vida real, mas os pedintes não abundavam por estas paragens. Finalmente descobri um que não tinha uma perna, e certa tarde entretive-me a calcular quanto, aproximadamente, teria arrecadado nessas escassas horas. Comecei por multiplicar por dois, porque mendigava em dois turnos, e depois por trinta, para chegar ao rendimento mensal, e cheguei à surpreendente conclusão de que ganhava mais que o meu pai como funcionário público. Nessa mesma noite comentei isto com o meu pai e, para meu espanto, não morreu de inveja. Apenas observou:
A diferença substancial entre o teu mendigo e eu não está no que ganhamos diariamente ou por mês, mas sim no facto de que eu pelo menos tenho as minhas pernas, com varizes e joanetes, mas tenho-as. Parece-te pouco?
Não, não me parecia pouco. Mas o meu mendigo nem sequer me servia para ser comparado com os de Victor Hugo. Evidentemente éramos ainda um país fascista muito fechado, e pouco desenvolvido, e por cá nem sonhava-mos ainda com obras assombrosas, menos com uma Assembleia Legislativa Regional. Presumia que mais tarde nos iríamos desenvolver, para então gerarmos a nossa mendicidade vernácula.
Passei muitos fins-de-semana, lendo encostado às palmeiras da Praça do Infante que era o meu local preferido. O ar puro e salgado que subia da baía proporcionava-me uma estranha sensação de bem-estar. Aproveitava para respirar a plenos pulmões. Em alguns momentos punha o livro de lado e ficava imóvel, só a ouvir os pássaros, o trote das mulas puxando carroças, e as raras buzinas que dialogavam ali pertinho na avenida marginal. Às vezes, entrava num dos cafés próximos para tomar um lanche. Dava-me bem com o funcionário mais novo, um tal Daniel que se especializara em pregar partidas inocentes a alguns clientes. Havia, por exemplo, um militar septuagenário e reformado, surdo como uma porta, que residia numa residencial próxima. Levantava-se muito cedo e descia para tomar o pequeno almoço no café. O Daniel ia atendê-lo com um sorriso franco e sistematicamente o tenente coronel perguntava-lhe pelas novidades e previsão meteorologica do dia.
Bife panado com batatas fritas _ respondia o brincalhão Daniel.
O outro, muito compenetrado, anunciava:
Então vou buscar o cachecol.
E o surdo pedia:
Por favor, rapaz, quero um chá de limão.
O Daniel perguntava com ar muito sério:
Como é que o quer, senhor tenente? Com espargos ou ração militar?
Bem quentinho _ dizia o outro, agradecido, e dava-lhe uma boa gorjeta, que o Daniel aceitava de imediato sem remorso. Fui várias vezes testemunha desses diálogos estrambólicos e posso garantir que o desempenho dramático do Daniel era de uma perfeição verdadeiramente profissional. Por isso não fiquei surpreendido quando, um ano mais tarde, o vi integrar um grupo de teatro amador.

Pela nobreza da gente que passou. Em sua memória.

Vitor Jorge

Nota:
(Os Miseráveis expõe a flosofia política de Victor Hugo, retratando a desigualdade social e a miséria decorrente, e, por outro lado, o empreendedorismo e o trabalho
desempenhando uma função benéfica para o indivíduo e para a sociedade. Retrata também o conflito na relação com o Estado, seja pela ação arbitrária do policial ou pela atitude do revolucionário
obcecado pela justiça).

sábado, 19 de janeiro de 2019

O LEOPOLDO

O LEOPOLDO

A casa onde nasci tinha os seus códigos e mistérios. Por exemplo, eu reparava que às vezes, quando o meu pai se aproximava da minha mãe e começava a fazer-lhe festinhas furtivas, havia momentos que a minha mãe sorria, devolvia-lhe um beijo e fechavam-se os dois no quarto. Mas outras vezes, quando o meu pai começava com as suas meiguices, a minha mãe ficava séria e só lhe dizia:
Hoje não posso, meu velho. Chegou o Leopoldo.
Para mim, essa resposta era um enigma, porque eu tinha estado a manhã toda em casa e não tinha chegado ninguém : nem da família do Leopoldo, nem de nenhuma outra família. Além disso não conhecia ninguém com aquele nome. Só muitos anos mais tarde é que soube que Leopoldo era o nome do rei Belga, Leopoldo II, um dos reis mais sanguinários de todos os tempos, pelas atrocidades cometidas no ex-Congo Belga. Ou seja, a minha mãe estava a avisar o meu pai (em código, claro, devido à minha indiscreta presença) que estava com o período e, consequentemente, não estava disponível para o erotismo. Outro mistério era a porta de entrada para o rés-do-chão. Eu estava proibido de tentar abri-la; bem podiam ter poupado esta proibição, já que as "caves" me provocavam um medo irracional e nunca me propus abri-la.
Entre as mais belas recordações de Pontas Negras estão os meus despertares, de que normalmente se encarregavam os inquilinos da figueira. Quando a minha mãe me gritava da cozinha para que eu me levantasse e fosse tomar o pequeno almoço, já muito antes os pássaros se tinham encarregado de me acordar.
Alguns tinham perdido o medo, e até a prudência, entravam no quarto e aproximavam-se da minha cama, sabendo que eu sempre lhes reservava um pequeno almoço de migalhas. E havia uma visita adicional sobre a qual nunca falei à minha mãe: um rato minúsculo, um ratinho que, quando eu abria os olhos, estava quase sempre junto à minha cama, à espera de pedacinhos de queijo de cabra, sobras da dose que me correspondia na dieta especial para compensar o meu défice de proteínas.
É óbvio que o ratinho e eu tivemos nessa altura uma recarga proteica nada desprezível.
Hoje, sem pais, nem Leopoldo, e
como na vida tudo se altera e modifica, é o vizinho defronte com sofisticado e ensurdecedor equipamento de som instalado no seu carro-mota que me controla o despertar, e noite dentro, o merecido descanço.

Vitor Jorge