O LEOPOLDO
A casa onde nasci tinha os seus códigos e mistérios. Por exemplo, eu reparava que às vezes, quando o meu pai se aproximava da minha mãe e começava a fazer-lhe festinhas furtivas, havia momentos que a minha mãe sorria, devolvia-lhe um beijo e fechavam-se os dois no quarto. Mas outras vezes, quando o meu pai começava com as suas meiguices, a minha mãe ficava séria e só lhe dizia:
Hoje não posso, meu velho. Chegou o Leopoldo.
Para mim, essa resposta era um enigma, porque eu tinha estado a manhã toda em casa e não tinha chegado ninguém : nem da família do Leopoldo, nem de nenhuma outra família. Além disso não conhecia ninguém com aquele nome. Só muitos anos mais tarde é que soube que Leopoldo era o nome do rei Belga, Leopoldo II, um dos reis mais sanguinários de todos os tempos, pelas atrocidades cometidas no ex-Congo Belga. Ou seja, a minha mãe estava a avisar o meu pai (em código, claro, devido à minha indiscreta presença) que estava com o período e, consequentemente, não estava disponível para o erotismo. Outro mistério era a porta de entrada para o rés-do-chão. Eu estava proibido de tentar abri-la; bem podiam ter poupado esta proibição, já que as "caves" me provocavam um medo irracional e nunca me propus abri-la.
Entre as mais belas recordações de Pontas Negras estão os meus despertares, de que normalmente se encarregavam os inquilinos da figueira. Quando a minha mãe me gritava da cozinha para que eu me levantasse e fosse tomar o pequeno almoço, já muito antes os pássaros se tinham encarregado de me acordar.
Alguns tinham perdido o medo, e até a prudência, entravam no quarto e aproximavam-se da minha cama, sabendo que eu sempre lhes reservava um pequeno almoço de migalhas. E havia uma visita adicional sobre a qual nunca falei à minha mãe: um rato minúsculo, um ratinho que, quando eu abria os olhos, estava quase sempre junto à minha cama, à espera de pedacinhos de queijo de cabra, sobras da dose que me correspondia na dieta especial para compensar o meu défice de proteínas.
É óbvio que o ratinho e eu tivemos nessa altura uma recarga proteica nada desprezível.
Hoje, sem pais, nem Leopoldo, e
como na vida tudo se altera e modifica, é o vizinho defronte com sofisticado e ensurdecedor equipamento de som instalado no seu carro-mota que me controla o despertar, e noite dentro, o merecido descanço.
Vitor Jorge
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