terça-feira, 26 de novembro de 2019

INVETERADOS

INVETERADOS             

A mentalidade não se adquire por decreto. Enquanto não fabricarmos o nosso próprio rastilho e a nossa própria pólvora, enquanto não adquirirmos uma consciência visceral, social, da necessidade da nossa própria explosão, do nosso próprio fogo, nada será profundo, verdadeiro, legítimo, tudo será uma simples casca, como agora é casquinha, só casquinha, a nossa tão apregoada democracia. O que leva muitos pulhas a afirmar impunemente que tem as mãos limpas, isso só se deve ao facto de o nosso conceito de higiene política deixar muito a desejar. Um povo que opta pelo nómadismo, apesar de saber ler e escrever, desconhece que a única transformação eficaz é obtida através da  cultura e educação política dedicada ao seu próprio desenvolvimento e progresso. Afirmamo-nos tão famosamente livres, e, no entanto, tão irremediavelmente encalhados, que seremos os últimos a compreender as lições da História, os últimos a abandonar o ritual de hipocrisia que só serve para inventariar corrupções, defeitos, fragilidades, e individualismos existenciais...

Vitor Jorge
25/11/2017

terça-feira, 12 de novembro de 2019

SÍMBOLOS DE UMA VIDA

SÍMBOLOS DE UMA VIDA

A mancha que tem na pele, a meio caminho do estreito pescoço, é inalterável, não há creme que a tape. Não é grande, não ofende a vista, mas nota-se. É o fígado, diziam-lhe os médicos desde há vários anos com monótona perseverança, mas ela sabe que essa manchinha lhe apareceu aos vinte e um anos exactamente no mês em que se tornou mulher, ou seja, uma época em que ainda não tinha fígado nem coração nem tornozelos nem gengivas, porque uma pessoa vai adquirindo consciência dos seus órgãos à medida que estes começam a doer, e naquele tempo a única coisa que lhe doía era ocasionalmente, o baço, quando corria exageradamente na praia ou atalhos, ou ajudava a puxar as pesadas redes a abarrotar de sardinha na praia de Porto Pim. Hoje, mãe de três filhos, alquebrada pela idade, a manchinha continua visível, sem alterações, uma rosa não tatuada de indescritível beleza.

Vitor Jorge