terça-feira, 24 de novembro de 2020

MINHAS MEMÓRIAS

MEMÓRIAS DO MEU PASSADO

Juan Gelman contou-me que uma senhora brigou a guarda-chuvadas, 
numa avenida de Paris, contra uma brigada inteira de funcionários municipais. Os 
funcionários estavam a caçar pombos quando ela emergiu de um incrível Ford 
bigode, um carro de museu, daqueles que funcionavam à manivela; e brandindo 
seu guarda-chuva, lançou-se ao ataque.
Agitando os braços abriu caminho, o seu guarda-chuva justiceiro 
arrebentou as redes onde os pombos tinham sido aprisionados. Então, enquanto os pombos fugiam em alvoroço branco, a senhora avançou a guarda-chuvadas contra 
os funcionários.
Os funcionários só atinaram a se proteger, como puderam, com os 
braços, e balbuciavam protestos que ela não ouvia: mais respeito, minha senhora, 
faça-me o favor, estamos a trabalhar, são ordens superiores, senhora, por que não vai bater no presidente da Câmara? Senhora, que bicho lhe mordeu? Esta mulher enlouqueceu...
Quando a indignada senhora cansou o braço, e apoiou-se numa parede para tomar fôlego, os funcionários exigiram uma explicação.
Depois de um longo silêncio, ela disse: o meu filho morreu.
Os funcionários disseram que lamentavam muito, mas que eles não tinham culpa. Também disseram que naquela manhã tinham muito que fazer, a senhora compreende...
o meu filho morreu, repetiu ela.
E os funcionários: sim, claro, mas que eles estavam ganhando a vida, que existem milhões de pombos soltos por Paris, que os pombos são a ruína desta cidade...
Cretinos, fulminou a senhora.
E longe dos funcionários, longe de tudo, disse:
o meu filho morreu e  transformou-se em pombo.
Os funcionários calaram-se e ficaram pensando um bocado. Finalmente, apontando os pombos que andavam pelos céus e telhados e calçadas, propuseram:
Senhora: por que não leva o seu filho embora e deixa a gente trabalhar?
Ela ajeitou o chapéu preto:
Ah!, não! De jeito nenhum!
Olhou através dos funcionários, como se fossem de vidro, e disse muito serena:
Eu não sei qual dos pombos é meu filho. E se soubesse, também não ia levá-lo embora. Que direito tenho eu de separá-lo de seus amigos?

(Para quem desconhece: Juan Gelman foi um poeta, jornalista e tradutor argentino. Foi um dos mais importantes poetas da Argentina das últimas décadas, autor de mais de vinte livros e poemas, vencedor do Prémio Cervantes em 2007. Viveu exilado no período de 1975-1988.
Faleceu a: 14 de janeiro de 2014, México.) A minha modesta mas sentida homenagem ao amigo, ao homem, cheio de amor e verdades dolorosas e amizade na sua pureza cristalina.

Vítor Jorge

Cascais 1988.

terça-feira, 20 de outubro de 2020

A IDIOTICE EM SÍNTESE

A IDIOTICE EM SÍNTESE

Está linda, a rua. Nem frio nem calor. Um sol muito amarelo, mas morno. Uma brisa marinha que apenas move as bandeirinhas dos estabelecimentos que vendem gelados e as folhas douradas das árvores outonais. 

Gosto da minha cidade, sinto que de algum modo faço parte dela. Olho muitos homens e mulheres opacos, mesquinhamente calculistas, euforicamente míopes, de coração explosivo, mas imprevidente, que desfilam, cinco em cada cinco, deixando a sua avultada caridade na mão suja e estendida da gorda e prepotente aleijada, a mendiga única, a mendiga excepção que, mais tarde, com a sua impecável perna artificial, converter-se-á em florescente dona de vários imóveis e outros pecúlios excedentes, olho estes cultivadores da esmola, estes filantropos do vintém, e embora eu negue o meu contributo, sinto que de algum modo eles representam o meu país, porque todos queremos o céu como pechincha, o poder como pechincha, todos queremos que a vida nos saia mais barata que ao comum dos mortais, e para isso não importa se o meio é a burla, a esmola, a acomodação, a inválida promessa ou a falsa invalidez milionária.

Todos queremos alcançar a vantagenzinha, enganar alguém para salvar a honra, a única forma de adquirir consciência das próprias forças é cometer a mínima indecência que nos ponha ao amparo das mais agressivas de todas as suspeitas, a módica incorrecção que impeça aos demais falar da nossa idiotice, a insuportável idiotice do honrado. Uma coisa é ser bom e outra muito diferente é que tomem uma pessoa por idiota. Esta frase deveria estar inscrita nas notas e moedas do euro. 

O resultado é que no passado, em algum remoto passado desajeitado,todos fomos bons, porém agora que sabemos o segredo, deixámos de o ser para que os demais não nos tomem por idiotas. Com respeito a cada um, todos somos os demais, todos pretendemos tomar cada um dos outros por idiota. Mas como ninguém quer deixar-se tomar por idiota, a consequência é que todos somos iluminados, e estamos, portanto gloriosamente situados por cima desse ser hipotético, caduco, superado, inexistente, esse português em quem todos pensamos quando dizemos: uma coisa é ser bom...

Vitor Jorge
20 Outubro 2019
(Artigo de opinião in Jornal Tornado)

sábado, 22 de fevereiro de 2020

Aniversário 2020

52 amigas amigos desejaram-me parabéns no Facebook por ocasião do meu aniversário. Feliz. 

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

A DAMA DA NOITE

A DAMA DA NOITE

Conhecem-se, de madrugada, num bar.
De manhã, ele acorda na cama dela. Ela aquece café; bebem-no pela mesma chávena. Ele descobre que ela rói as unhas e que tem umas mãos lindas de miúda. Não dizem nada. Enquanto se veste, ele procura palavras para lhe explicar que não lhe poderá pagar. Sem olhar para ele, ela diz, como quem não quer a coisa:
Nem sei como te chamas. Mas se quiseres ficar, fica. A casa não é feia.
E ele fica.
Ela não faz perguntas. Ele também não.
À noite ela vai trabalhar. Ele pouco ou nada sai.
Passam os meses.
Uma madrugada, ela encontra a cama vazia. Em cima da almofada, uma carta que diz:
Queria levar comigo uma das tuas mãos. Roubo-te uma luva. Perdoa-me. Digo-te adeus e muito obrigado por tudo.
Ele atravessa o rio Minho, a partir de Vila Nova de Cerveira, numa tentativa de fuga para França. Poucos dias depois, é preso nos arredores de Barcelona. É preso por um acaso idiota.
O coronel insulta-o e bate-lhe. Levanta-lo pelos colarinhos:
Vais dizer-nos porque não tens documentos, para onde pensas que vais. Vais dizer-nos tudo. Ele responde que viveu com uma mulher em Vila Nova de Cerveira. O coronel não acredita. Ele mostra a fotografia: ela sentada na cama, nua, com as mãos na nuca e o longo cabelo preto a cair-lhe sobre o peito. 
Com esta mulher diz, em Cerveira. 
O coronel arranca-lhe a fotografia da mão e, de repente, explode de fúria, dá um murro na mesa, grita puta que a pariu, traidora filha da puta, vai-me pagar, desgraçada, esta sim vai-me pagar. 
E então ele dá-se conta. A casa dela era uma armadilha, montada para caçar tipos como ele. E lembra-se do que ela lhe disse uma tarde, depois do amor:
Sabes uma coisa? Eu nunca senti, com ninguém, esta ... esta alegria dos músculos. 
E pela primeira vez compreende o que ela acrescentou, com uma sombra estranha nos olhos:
Alguma vez tinha de me acontecer, disse. 
Foda-se! Eu sei perder. 

(Este facto aconteceu em 1970 quando muitos portugueses acossados pela ditadura de Salazar tentavam salvar a pele através da fuga pelas fronteiras portuguesas) 

Vitor Jorge