18 ABRIL 2014
O impeto irracional de compra devasta natureza e amplia desigualdade. Mas é alimentado pela ideia de que mercadorias suprem vazios existenciais O trânsito insano nos grandes centros urbanos, a excitação provocada pelas luzes e decoração das cidades, filas enormes no estacionamento dos centros comerciais e a imposição da compra de um número quase sem fim de presentes: para familiares, amigos secretos ou simplesmente conhecidos. Fico pensando no real significado da data, de fechamento do ano e de um ciclo. Será que estamos comemorando de forma sustentável, com tanto desperdício de comida e embalagens, amontoado no dia seguinte às comemorações? Será que passamos valores humanos para as crianças ao comemorar um Natal em que o presente é o mais importante da festa e as cartas endereçadas ao bom velhinho trazem listas sem fim de brinquedos e eletrónicos – objetos de desejo das nossas crianças desde a mais tenra idade? Consumo consciente versus consumismo. Esse talvez seja o maior desafio que a contemporaneidade nos reserva: como consumir de forma mais consciente e crítica, principalmente em épocas comemotativas, quando somos atravessados e impelidos a consumir em excesso? Não podemos negar que o consumo faz parte do nosso cotidiano. É um factor importante no processo de desenvolvimento económico, pois aquece o mercado e a produção, gera lucros e empregos. Mas, quando recebe o sufixo ismo essa prática, tão trivial no nosso dia a dia, transforma-se em doença. Oneomania ou compulsão por comprar é hoje um fenómeno que acomete uma grande fatia da população mundial, a maioria mulheres, segundo dados científicos recentemente apurados. Um alerta, porém: atualmente o consumismo não é tido como doença. É um hábito e estilo de vida, aceite na nossa sociedade desde a infância não só pelo estímulo incansável do mercado, mas também pela enorme pressão social que nos convida a consumir sem reflexão. Mais do que um hábito, o consumismo hoje agrega valor ao indivíduo. E aí vale a reflexão: que valores são esses que estamos transmitindo às crianças? Hábitos consumistas e valores materialistas que priorizam o ter em detrimento do ser, o individual acima do coletivo, a competição ao invés da cooperação. Facto que fica evidente no estudo em que somente uma em cada dez crianças diz preferir brincar a comprar. O estilo de vida consumista coloca-nos, portanto, questões sérias e urgentes. A primeira é de ordem ética e moral: 20% da população mundial consomem 80% dos recursos naturais, ou seja, poucos consomem muito, enquanto a maioria passa por privações. Num país como Portugal, que tem uma desigualdade social enorme, esse factor agrava-se contribuindo para o aumento da pobreza e da violência. O segundo ponto diz respeito às questões ambientais, pois sabemos que os recursos são finitos e relacionamo-nos com eles de forma insustentável. Por fim, não podemos deixar de mencionar os impactos emocionais que esse estilo de vida impõe aos sujeitos contemporaneos que crescem acreditando na posse e oferta de objetos como sinónimo de felicidade e demonstração de afeto. Se antigamente os nossos elos sociais se davam por instâncias claras como espiritualidade, família e escola, hoje precisamos adornar os nossos corpos para nos tornar visíveis e assim sermos reconhecidos e aceites como membros da sociedade. O consumo transformou-se em passaporte para obtenção de cidadania, proporcionando ao sujeito visibilidade social. Bens e serviços funcionam como ingresso de trocas sociais e afetivas. A cultura do consumo, na qual estamos todos inseridos, mercantilizou dimensões sociais e datas comemorativas. Mas consumir pode significar extinguir e destruir, portanto precisamos mudar nossos próprios hábitos de consumo, assim como passar valores menos materialistas às nossas crianças, para que nas suas cartas de Natal peçam algo além de objectos. O meu pedido vai aos adultos cuidadores de crianças, sejam eles pais, avós ou educadores. Será que juntos não conseguimos lutar contra esse convite exagerado ao consumo, e realizar festas de final de ano que envolvam outro tipo de troca – que não somente a de presentes? Talvez assim possamos subverter a ordem estabelecida do consumismo desenfreado e exercitar o desapego. E encontrar uma forma mais sincera de fechar o nosso ano com menos dívidas e mais afecto.
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