MEMÓRIAS DO PASSADO PRESENTE
A primeira greve da minha vida deixou-me cicatrizes. Geralmente, os conflitos do ensino não me preocupavam muito, por mero desconhecimento de causa. Mas a F. P. A. tinha decretado dois dias de greve, os alunos aderiram e eu nem sequer perguntei qual era o motivo. Só pensei que, já que não ia às aulas, poderia aproveitar para devolver ao Lopes um monte de livros que ele me tinha emprestado nos últimos meses. O Lopes vivia ali próximo, na Calçada do Grilo, por isso pus vários Freud, Jung e Adler na pasta que levava diáriamente para as aulas. Pus outros tantos num saco, apanhei um eléctrico, e apeei-me na paragem próxima da escola.
Lentamente (nestas circunstâncias os livros pesam), dirigi-me à Calçada do Grilo. Ali próximo, distingui a figura inconfundível do Tomás, conhecido como o Campeão (tinha ganho várias competições de atletismo para jovens). Fez-me sinal e começou a aproximar-se. O Campeão era bom atleta mas mau aluno. Tinha mais dois anos do que eu, todavia era repetente e estava na minha turma. Diziam que era comunista e era um eficaz organizador de paralisações, greves, protestos, manifestações, etc. Decorria o ano de 1972. Esperei por ele, carregado de livros. Mas quando finalmente chegou ao pé de mim, gritou:
Traidor! Fura greves!
E sem dizer água vai, encaixou-me um tremendo murro na maçã direita do rosto que ficou logo como um farol. Enquanto me baixava para pousar no chão a minha carga de livros e poder defender-me, consegui gritar-lhe:
Então Campeão, o que é que tu tens? Estás doido? Eu não sou, nunca fui traidor!
Ai não? E onde é que tu vais com isso tudo? Não vais para as aulas?
Não, Campeão, vou devolver estes livros ao Lopes, que mos emprestou e vive aqui perto.
Mostrei-lhe a minha carga para que visse que não eram livros escolares. O Tomasito ficou roxo.
Desculpa, magrinho. Como é que eu pude fazer-te isto se sou tão teu amigo, e com tudo o que tu me sopras durante as aulas. Desculpa magrinho, a sério, desculpa.
Desculpei-o, apesar da minha maçã do rosto continuar a fazer uma sinalização que parecia o farol da entrada da barra do porto de Lisboa.
Insistiu muito para me oferecer uma imperial e fomos à cervejaria defronte. Aí, como uma prova de confiança, contou-me a sua história. O pai batia na mãe diáriamente.
E o que é que ela faz?
Chora, só isso.
E tu?
Eu puxo-o pelo braço e afasto-o, mas acaba por me bater também e por me atirar ao chão.
Mas Tomasito, com esse corpo todo que tens...
O meu pai é muito maior do que eu. Além disso não posso nem quero bater-lhe. Só quero é que ele não bata na minha mãe.
E porque é que ele lhe bate?
Diz que ela teve um amante (ele diz <<um querido >>) aí há vinte anos atrás e que até desconfia (isto só acontece quando ele vem bêbado) que não é meu pai. Como é que não é? Somos parecidos como, não digo como duas gotas de água, mas como duas gotas de aguardente. Por isso é que tenho tanta dificuldade em estudar. Com um ambiente destes deves imaginar como é difícil concentrar-me.
Pagou as cervejas e propôs-me (já se tinha convencido de que eu não era um traidor) que nos aproximássemos da escola. Antes passámos em casa do Lopes e deixei-lhe os livros, agora com mais um motivo: não desencadear mais suspeitas infundadas. O Lopes olhou espantado para a minha maçã do rosto mas não disse nada.
Em frente à escola estavam cerca de duzentos estudantes que gritavam palavras de ordem. O trânsito estava cortado e ouvia-se considerável concerto para buzina e orquestra. Foi aí que apareceu um batalhão de pides, com a determinada intenção de pôr termo ao evento, batendo sem dó, e prendendo aliatoriamente. Começaram todos a correr que nem gazelas, mas eu devo ter corrido como uma tartaruga, resistindo sempre, apanhei uma espadeirada nas costas, um rasgão na camisa, e um par de algemas nos pulsos. Enquanto era empurrado com incrível "meiguice" para uma viatura, já não consegui vislumbrar o Tomasito nem o Lopes. Passei duas noites e dois dias no "hotel" da António Maria Cardoso, submetido a interrogatórios e sevícias dolorosas quanto injustas, nesta que foi a minha estreia na arte da inocência.
A meu favor contava um previlégio natural: aprendia rapidamente. A partir daí continuei a minha luta, voltei por diversas vezes à António Maria Cardoso, paguei caro os meus silêncios nos interrogatórios. Resistente, saí sempre vencedor, apanhei-lhes a estratégia da covardia, e a partir daí cresci e apareci, incapaz de julgar um meu semelhante.
Vitor Jorge
"É o indivíduo que não está interessado no seu semelhante quem tem as maiores dificuldades na vida e causa os maiores males aos outros. É entre tais indivíduos que se verificam todos os fracassos humanos".
Alfred Adler
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