MEMÓRIAS DO PASSADO PRESENTE
AS INICIAIS
Certa tarde, encontrei num jardim das imediações desta Cidade da Horta gravadas com uma faca ou um canivete no tronco de um pinheiro, as letras <<L>> e <<D>>, dentro de um coração rudemente desenhado, e pus-me a conjecturar sobre aquelas iniciais e sobre o remoto casal a que se referiam. O traço parecia antigo, como se inumeráveis chuvas o tivessem lavado e voltado a lavar.
Era um jardim abandonado, e aquele edifício em ruínas tinha sido uma casa muito confortável de gente rica. Talvez as iniciais fossem dessa época. Ocorreu-me que o primeiro <<L>> se referia a um Luís e o segundo a uma Dulce. Decidi que teria sido um amor clandestino, ou pelo menos censurado, digamos que entre primos direitos, ou talvez o Luís fosse o filho mais novo da família e a Dulce uma serviçal adolescente e ingénua, que tinha acabado por engravidar e que por isso fora despedida, apesar do desespero de Luís, que certamente ainda não teria aprofundado a questão da existência de classes sociais. Também podia ser que Luís fosse um serviçal e Dulce a menina da casa, claro que nesse caso não teria ficado grávida, porque o serviçal saberia alguma coisa (sobre métodos anticoncepcionais) e teria consciência das penalidades que o esperavam por suposta violação de uma menor de boas famílias.
Havia ainda a hipótese de a inicial repetida representar o cúmulo da solidão, uma espécie de espelho embaciado, ou seja, Luís mais Luís, ou Dulce mais Dulce, isto é, a marca de alguém que desejava companhia mas só se encontrava a si mesmo, ou a si mesma, e que criara uma fantasia para apagar o sofrimento com um prazer hedonista e, no entanto, tão angustiante como costumam ser os prazeres solitários. <<L>> poderia também significar Liberdade e <<D>> Democracia, ideia que excluí de imediato pela constante persistência do contraditório citadino, mas que deveria constar dos princípios de identidade.
A duplicação constituiria uma insistência, uma obseção, ou talvez nostalgia de uma origem contígua, de uma identidade paralela em quem confiar, ao ponto de pô-la dentro do mesmo coração, elíptica forma de designar um só mundo, talvez um só amor?
Como se pode ver, eu estava com uma indigestão de leituras românticas e também de simbologia humana. O primeiro caso era fruto do meu cocktail de romances, o segundo resultava das minhas conversas com um tal Filipe, que estava totalmente invadido pela psicanálise (o seu tio fora um verdadeiro tríptico: médico, psiquiatra e psicanalista em Lisboa) e que, inconformado com os símbolos mais ou menos popularizados por Freud e seus seguidores, acrescentava constantemente outros de sua lavra. Confesso que a insistência dele me aborrecia um pouco, mas algum sedimento me deixava e eu não fazia nada melhor do que aplicá-lo às desprevenidas iniciais do velho pinheiro.
Filipe tinha também outras aptidões. Por exemplo, sabia ler as linhas da mão e ler agoiros e presságios na espuma da cerveja.
Encontrámo-nos uma tarde num bar próximo, e como viu que eu estava a terminar a minha cerveja pediu-me o copo e, seguindo o preceito, rodou-o. Examinou atentamente a escassa espuma.
Não leves muito a sério a minha cervejomancia disse, sorrindo. Nem eu a levo a sério. Simplesmente sou atraído pelos enigmas, pelas adivinhações.
Fiquei mais um pouco a contemplar aquilo que para mim não significava nada.
Sabes o que vejo? Uma mulher e uma árvore.
Assumi calmamente o presságio, porque interpretei que, de qualquer forma, deveria tratar-se da Marina e do pinheiro.
Vitor Jorge
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