Entrei ontem num bar para comprar água. Para minha surpresa, estava ao meu lado o Augusto. Não o via há quarenta e um anos, quando era ainda um honesto colega de farmácia. Emigrou para a América, e desde então, nunca mais tinha sabido nada dele. Aproveitei para perguntar em que trabalhava.
Sou jornalista. E gosto, sabes? Dedico-me às generalidades, mas o que me entusiasma são os crimes violentos. O director do jornal, sabe que tenho essa preferência e sempre que há um crime desse género manda-me lá, e eu agradeço. Devias ver as minhas descrições fantásticas do assassinado, embora eu prefira quando são de uma assassinada, sobretudo quando a encontram em pêlo. Como deves calcular não escrevo assim, faço descrições muito correctas: <<A infeliz jovem encontrava-se totalmente sem roupa>>. O director diz que o meu estilo é o que melhor se adapta ao sangue e ao crime, e eu acho, modestamente, que ele tem razão. A gíria do Augusto, pensei eu, parecia uma caricatura do léxico dele próprio que usava por cá quando se alimentava de Sir Arthur Conan Doyle.
De repente, Augusto olhou o relógio e disse que já era tarde para si, que tinha de ir embora.
Tens comissão sobre os crimes sangrentos?
Felizmente, sim. Tenho um ordenado generoso, pagam-me o triplo para descrever um duplo crime passional, ou faça a cobertura de um seminário sobre triquinose. Sou mesmo bom nisto. E agora vou-me despachar, embarco dentro de meia hora e ainda hoje à chegada tenho a reconstituição do crime numa escola com mais de uma dúzia de jovens mortos. Fica com o meu cartão, para me ligares um dia destes a contar o que tens feito, porque hoje fizeste-me falar como um papagaio e tu estiveste calado como uma porta.
Já sem Augusto, aproximei-me do balcão, pedi uma genebra amarga e bebi lentamente, nunca tinha provado. Na verdade detestei-a, mas bebi heroicamente aquela porcaria. Precisava vomitar imediatamente.
Vitor Jorge
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