domingo, 1 de setembro de 2019

Sumir ou somar-se

Sumir ou somar-se? Apago os outros ou chamo-os?
A solidão é uma fraude. Vou comer o meu próprio vómito, como o camelo? Que risco corre o masturbador? Quando muito o de arranjar uma entorse no pulso.
A realidade, os outros: alegria e perigo. Chamo os touros, aguento-lhes a investida. Eu sei que aqueles cornos ferozes podem dar-me cabo da femoral.
Converso sobre estas coisas, em longas noites, com amigos que já partiram. E em longas cartas (ainda as manuscrevo) de profundos repúdios endereçadas aos assassinos de ideias, da cultura do silêncio, da multiplicação da impotência e da sementeira do medo.

Vitor Jorge

HORTA PRAÇA DO INFANTE (memórias)

HORTA, PRAÇA DO INFANTE
(memórias)

Juntei lenha, e água da bica.
Prove, mestre. Está no ponto.
Hmm.
A sério que gosta?
Está uma maravilha, mano.
Conseguimos algumas linguiças do Pico muito saborosas, alguns polvos, mesmo junto à muralha. Valia a pena reter na boca o paladar delicioso. Depois passamos para o assado cortando pequenos pedaços na brasa, e comendo-os aos poucos, como deve ser. Engasgamo-nos um pouco, mas de riso. Nem deixámos o vinho respirar, duas garrafas de vinho de "cheiro tinto", saboreamo-lo e sentimo-lo a escorregar, tíbio, expesso, pelo estômago e pelas veias.
Comemos, bebe-mos até não restar um pedacito no churrasco. Mestre Feijó agarra o último bocado com a ponta da navalha. Olho para ele, olho-o com olhos de cachorro abandonado e penso: "Vai comover-se", mas ele engole-o impávido.
Depois deitamo-nos na relva, com o sol na cara e a Ilha inteira para nós. Fumamos. Não havia mosquitos.
A brisa fazia assobiar as copas das palmeiras. De vez em quando ouvimos ali pertinho um chapinhar de remos, e sonoras gargalhadas de crianças brincando nos baixios com a baixa-mar, depois adormeci e sonhei. Vinha-mos na lancha Espalamaca, Madalena Horta. Estáva-mos sentados lado a lado no comando à conversa. Desse lado não estava mais ninguém. Os restantes passageiros estavam todos juntos nos bancos da popa, distantes de nós. Não eram passageiros comuns. Membros do governo regional, e um séquito enorme de engenheiros, e outros mediadores do futuro.
Nisto olhei para eles e achei-os estranhos. Estavam imóveis e mudos e eram todos exactamente iguais. Disse a mestre Feijó. Espere, e fui até à popa. Toquei num dos passageiros e, ploc, ele caiu no convés. Ao cair, soltou-se-lhe a cabeça de gesso. Gritei para mestre Feijó: atire-se, atire-se, e eu também mergulhei. Nadámos debaixo da água. Quando vim à tona, vi-o. Tornámos a mergulhar e continuamos a nadar desesperadamente. Estávamos muito longe quando a lancha voou em pedaços. Eu senti a explosão e vim à tona: vi o fumo e as chamas. Mestre Feijó estava a meu lado. Abracei a sua memória e acordei, lavado em lágrimas.

Vitor Jorge

Magia de um olhar

Atravessando o atalho exíguo, chego à beira do mar, por todos os lados.
Esta é uma manhã de Verão de luz limpa. Corre uma brisa suave. Da chaminé da casa de pedra, o fumo solta-se e ondula. Na água navegam golfinhos. Uma vela branca desliza pelo horizonte.
O meu corpo tem, esta manhã, o mesmo ritmo da brisa, do fumo, dos golfinhos e da vela, que a sós, sinto e vejo.

Plano de extermínio (verde)

Plano de extermínio: destruir a relva, arrancá-la pela raiz até à última planta ainda viva, cobrir a terra com betão, pedra, alcatrão.
Depois, matar a memória da erva. Para colonizar as consciências, suprimi-las; para as suprimir, esvaziá-las de passado. Aniquilar qualquer testemunho de que na região houve mais do que silêncio cárceres e campas.
É proibido recordar.

Vítor Jorge