HORTA, PRAÇA DO INFANTE
(memórias)
Juntei lenha, e água da bica.
Prove, mestre. Está no ponto.
Hmm.
A sério que gosta?
Está uma maravilha, mano.
Conseguimos algumas linguiças do Pico muito saborosas, alguns polvos, mesmo junto à muralha. Valia a pena reter na boca o paladar delicioso. Depois passamos para o assado cortando pequenos pedaços na brasa, e comendo-os aos poucos, como deve ser. Engasgamo-nos um pouco, mas de riso. Nem deixámos o vinho respirar, duas garrafas de vinho de "cheiro tinto", saboreamo-lo e sentimo-lo a escorregar, tíbio, expesso, pelo estômago e pelas veias.
Comemos, bebe-mos até não restar um pedacito no churrasco. Mestre Feijó agarra o último bocado com a ponta da navalha. Olho para ele, olho-o com olhos de cachorro abandonado e penso: "Vai comover-se", mas ele engole-o impávido.
Depois deitamo-nos na relva, com o sol na cara e a Ilha inteira para nós. Fumamos. Não havia mosquitos.
A brisa fazia assobiar as copas das palmeiras. De vez em quando ouvimos ali pertinho um chapinhar de remos, e sonoras gargalhadas de crianças brincando nos baixios com a baixa-mar, depois adormeci e sonhei. Vinha-mos na lancha Espalamaca, Madalena Horta. Estáva-mos sentados lado a lado no comando à conversa. Desse lado não estava mais ninguém. Os restantes passageiros estavam todos juntos nos bancos da popa, distantes de nós. Não eram passageiros comuns. Membros do governo regional, e um séquito enorme de engenheiros, e outros mediadores do futuro.
Nisto olhei para eles e achei-os estranhos. Estavam imóveis e mudos e eram todos exactamente iguais. Disse a mestre Feijó. Espere, e fui até à popa. Toquei num dos passageiros e, ploc, ele caiu no convés. Ao cair, soltou-se-lhe a cabeça de gesso. Gritei para mestre Feijó: atire-se, atire-se, e eu também mergulhei. Nadámos debaixo da água. Quando vim à tona, vi-o. Tornámos a mergulhar e continuamos a nadar desesperadamente. Estávamos muito longe quando a lancha voou em pedaços. Eu senti a explosão e vim à tona: vi o fumo e as chamas. Mestre Feijó estava a meu lado. Abracei a sua memória e acordei, lavado em lágrimas.
Vitor Jorge
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