domingo, 19 de agosto de 2018

FRAGMENTOS DO PASSADO PRESENTE (5)

FRAGMENTOS DO PASSADO PRESENTE (5)

Monólogo de um general no dia 23 de Abril de 1974

Olha amigo, vocês que tem Marx preso com alfinetes e enchem a boca com o conceito da mais-valia relativa, poderiam recordar de vez em quando que Marx fala da economia política, das ciências da riqueza, como de uma verdadeira ciência moral, a mais moral de todas as ciências. Não vos ocorre que, embora o marxismo denuncie a alienação do indivíduo sob o regime capitalista, na realidade também está a propor uma mudança da categoria dessa ciência moral? O que fariam, tu e todos os teus revolucionários desengravatados, com a possibilidade de uma mudança de estrutura, como tanto gostam de dizer, e com a imediata entrega dessa estrutura recém-mudada a uma quadrilha de tipos imorais, ambiciosos, manipuladores, desleais? Parece-me formidável que mudem a estrutura, mas zelem para que simultaneamente se transforme a categoria moral deste povo, caso contrário a mudança vai-se desmoronar, e a evolução ou revolução ou o que quer que seja terá sido inútil. Não te ocorreu pensar que neste país existe uma grande apatia política, um colectivo encolhimento de ombros, devido talvez ao facto de as inexistentes conquistas sociais não terem sido dadas a um povo que também nunca as ousou reclamar?
Todos vocês são assim: aparentemente vêem claro mas no fundo são destrutivos. Só servem para inventariar os defeitos, as carências.
Não Vitor, a diferença é só de ritmo. Eu acho que a única transformação eficaz virá pela educação política, e esta requer o seu tempo. Tu, em troca, achas que a mudança será repentina, que amadurecerá subitamente, sei lá eu. Recordo claramente que antes de 20 anos tudo parece urgente, e é certo, é urgente. Mas o reconhecimento de que uma necessidade seja peremptória nem sempre significa que a solução  seja iminente. Oxalá tenham razão, tu e os teus camaradas, mas para mim só existem duas vias para adquirir consciência política: uma é a fome e a carência, a outra é a educação. Nós não sofremos fome nem carência, pelo menos não o sofremos como na África, e, por outro lado, não fomos convenientemente educados. Daí que nos importe tão pouco a verdadeira transformação política e, em troca, nos importe tanto o fenómeno político bastardo, adulterado. Quando digo isto, penso na pobre ambição burocrática, na rede de clubes, no grande nirvana dos reformados, na corrupção ao desbarato. Vocês fazem os vossos planos sobre a base de um povo que previamente idealizam, mas esse mesmo povo não deu ainda à idealização que vocês decretam. E acredita que isto que te estou a dizer não vai contra o povo nem contra vocês. Vocês são incríveis e tem as melhores intenções, reconheço-o, mas metem a pata na poça quando só tem esquemas económicos, ainda por cima alheios, e se esquecem da realidade básica: o povo também é incrível, há nele uma excelente matéria-prima mas antes que esta matéria-prima seja utilizável, é imprescindível educá-lo. Aqui quase todos sabem ler e escrever, mas não sabem pensar politicamente se não for em termos de empregos públicos ou de reformas. Há coisas que se arranjam em slogans, mas outras não. Se vos fosse possível fazer uma sondagem sobre reforma agrária, por exemplo, ieis descobrir que os seus defensores mais entusiastas são os profissionais, os intelectuais, os estudantes. Sempre classe média para cima, a maioria deles com um apartamento no seu activo imóvel. Mas convido-te a percorreres o campo, e se encontrares um camponês, jovem ou velho que não se assuste quando lhe mencionares a reforma agrária, ou que não afaste contundentemente essa possibilidade, terás de ser condecorado, ou, mais simplesmente ainda, não acreditar em ti. Convence-te de que, agora pelo menos, o nosso peão de exploração agrícola não tem sentido da terra, gosta de se sentir nómada. Esse é o teu precário e aventureiro conceito de liberdade, saber que hoje pode fazer uma domaçao aqui, amanhã uma tosquia acolá, saber que não está ligado a nada, ou pelo menos acreditar que não está. E agora sai, porque não posso estacionar. Obedeci, compungido, com a minha convicção inabalável, e um clic do gravador que em fita magnética registou este extenso monólogo.

Vitor Jorge 

domingo, 12 de agosto de 2018

FRAGMENTOS DO PASSADO PRESENTE (4)

FRAGMENTOS DO PASSADO PRESENTE (4)

Comoções

Nada se move aqui. Não há ruido, nem sequer buzinas. As persianas deixam passar uma luz débil. A perna de Aline  fora do lençol ainda me comove. Melhor dizendo, desde há uma semana que tudo me comove. No café, a funcionária carnuda comove-me, mas não graças à sua carne envergonhadamente oferecida ; antes me comove apenas pela sua categoria servilista. Na rua comovem-me os  mendigos que exibem as suas chagas convenientemente escondidas na sua total descapitalização. No meu dia social comovem-me as pessoas que me falem do quão maravilhosa deve ser New York ou o turista um pouco menos impessoal que pergunta timidamente que significado simbólico  tem a fealdade abusiva do edifício da Assembleia Regional dos Açores em contraponto com a magnificência da Biblioteca João José da Graça. À tarde quando passo pela rua principal desta mui nobre cidade da Horta comove-me a multidão de pessoas tentando caminhar num passeio variável entre os vinte centímetros e o metro de largura desafiando a cada passo o atropelamento pela obrigação de sair para a via onde circulam viaturas de dimensões e velocidades variáveis. À noite quando me instalo comodamente na insónia, comove-me a minha paciente e pormenorizada reconstrução de uma sociedade atípica, despretensiosa, arrulhando pelas esquinas bem me queres, mal me queres. Snipers armados até aos dentes disparando rockets fulminantes contra os governantes mortos de riso dos alorpados. Em qualquer momento quando a Yo desperta e me toca, ou vice versa, comove-me o seu pobre corpo que conheço tão bem, o sinal pequeno que vem depois do sinal grande, a zona áspera em redor do mamilo, a cicatriz à altura do apêndice, a vértebra que forma um promontório levemente maior que o das outras, o sexo morno, os joelhos lustrosos. Onde estarei amanhã? Hoje é o dia. Dia dos desassossegos, da luta, da fraternidade, da ancia desmedida de amar, tudo e todos, sem condição. Comove-me este teatro de perdas e enganos neste suspiro comovente que é a vida, mas irradiando volúpia requalificada.

Vitor Jorge

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

FRAGMENTOS DO PASSADO PRESENTE 3

FRAGMENTOS DO PASSADO PRESENTE

"Amuletos da sorte"

O primo Bartolomeu brincava comigo na ribeira e matagal contíguo. Não o vi mais, mas não me importou demasiado e continuei a brincar sozinho. Com pedrinhas, caracóis, com uma tábua de pregos enferrujados. Pensei que ele tinha voltado para casa. De repente vi a ferradura. A tia Maria aconselhava atirar as ferraduras para trás, sem olhar: isso trazia sorte. Então eu peguei na ferradura, para maior garantia tapei os olhos e lancei-a por cima do meu ombro. Ouvi dois segundos depois um grito agudo, e depois mais nada. Sim, tinha acertado na cabeça de Bartolomeu. E ele tinha desmaiado. Mataste-o, dizia a tia Maria quando chegou a correr, mataste o meu  bebé, o teu priminho, menino assassino. O corpo de Bartolomeu estava frouxo e o seu rosto exibia uma impressionante palidez quando o tio Francisco o levava em braços eu corria atrás, chorando e reclamando aos gritos: Que abra os olhos, diz-lhe que abra os olhos. Mas o bracinho continuava pendurado das costas do tio Francisco, como se a mão quisesse entrar no bolso do casaco de cotim. Depositaram-no sobre a cama e eu chorava, tentando explicar que não sabia que ele se tinha escondido. Diz-lhe que abra os olhos; diz-lhe tio. Pensei sinceramente que o tinha matado e a ideia tornou-se-me insuportável. A tia Maria punha-lhe panos de água fria na testa e o tio Francisco fazia-o cheirar amoníaco. Quando passados poucos minutos Bartolomeu abriu primeiro um olho, depois o outro, e disse queixoso: Ai como me dói, quem foi?; quando eu vi que vivia, rebentei numa gargalhada eléctrica e comecei a dizer à tia Maria: Viste, tia, eu não o matei, ele tinha-se escondido, eu atirei a ferradura para trás sem olhar, como tu me ensinas-te, mas não trouxe sorte ao Bartolomeu nem a mim. E ela riu, ainda chorando, mas já sem rancor, e abraçou-me: Ai, meu filho,
graças a Deus que não aconteceu nada, sabes quão horrível seria se tivesses matado o teu priminho? No entanto, alguns anos depois, quando o Bartolomeu realmente morreu vítima de um terrível acidente, esmagado pelo enorme tronco de uma árvore, não me lembrei daquela vez que o tinha visto frouxo, vencido com o braço pendurado e as pontas dos dedos a dois centímetros do bolso do tio Francisco.
Sorte? Duas décadas depois, matava para me salvar, porque o país só tolerava gestos desumanos, insossos e servis. Sinto-me como um destinatário universal da repulsa; asquerosamente sózinho,  naufragado numa ilha levada pela sorte individualista.
Continuo a olhar o espectáculo do mar do canal, com cinco velas desafiadoras e erectas e uma só nuvem branca afiada, apoiada sobre o dorso do horizonte; acariciada por mim, beijada por mim quase sem palavras, sem amuletos da sorte.

Vitor Jorge

FRAGMENTOS DO PASSADO PRESENTE 1

FRAGMENTOS DO PASSADO PRESENTE

Para quê escrever estes rascunhos? Quando os anos se sucedem, uma pessoa começa a ter noção de que o tempo foge, e talvez por isso alimente a auto-ilusão de que escrever sobre o quotidiano pode ser uma forma, mesmo que primitiva, de travar esse descalabro. Não se consegue travá-lo, claro. Nada nem ninguém é capaz de parar o tempo.
No entanto, há tantos factos e imagens que desfilam diante dos nossos olhos (paisagens, notícias, alegrias, rostos, leituras, surpresas, desgraças, riscos, luxos, multidões) e que de certa maneira nos alteram a vida, mesmo que seja apenas em milésimos do rumo predeterminado. Dias ou meses depois, é provável que lamentemos, se responsáveis, não ter apontado esses momentos e vicissitudes.
A verdade é que nunca acreditei nos diários íntimos. Creio que são muito poucas as ocasiões em que uma pessoa consegue aflorar a sua própria profundidade em instantes que podem ser maravilhosos ou assustadores. Mas isso talvez aconteça três ou quatro vezes ao longo de uma existência. De forma que não vale a pena simular que se alcança essa profundidade diariamente, quando na melhor das hipóteses, apenas se chega ao primeiro subsolo.
Afinal não é tarefa pequena ser honesto na transmissão do que se vê, se toca, se prova, se cheira, se ouve. Gostava que estes rascunhos fossem como um caderno de navegação, como me ensinou Agostinho da Silva, mas dos sentidos, e destinado a incluir também as eventuais reflexões provocadas por essas sensações e tacteamentos no vestíbulo da intimidade.
Hoje, no café, tive duas conversas um tanto inquietantes. A primeira foi com um norte-americano oriundo do Iowa. Pensei que seria subgerente ou terceiro vice-presidente de uma qualquer empresa de meia envergadura. Se fosse de um nível elevado, não estaria neste café. De qualquer forma, perguntou-me se eu lhe conseguiria arranjar callgirls, e eu disse-lhe que não, que esse tipo de "serviço" era prestado em grandes metrópoles, além do manifesto de ofendido. Respondeu que era uma pena porque gostava mesmo deste país, (ilhas). Perguntei-lhe porquê e ele disse-me que era por não ter pretos, o que lhe dava a garantia de que qualquer callgirl seria seguramente branca. Ainda esclareci que neste país havia uma percentagem considerável de pessoas de raça negra. Celebrou ruidosamente essa (percentagem considerável) porque poderiam ser esmagados a qualquer momento. Perguntei-lhe o que fazia. Para minha surpresa não era subgerente nem terceiro vice-presidente mas sim professor de Filologia. Saí do local apressadamente para evitar desgraça maior, para vomitar cem passos adiante, já em casa. O outro encontro de acaso foi  com um político da extrema direita portuguesa. Os nossos políticos veteranos deste teor foram injectados com o vírus salazarista, que pode gerar um tumor de acomodação e até um crescimento descontrolado e irreversível de células "democráticas". Este país está a desfazer-se e antes que seja tarde será necessário refazê-lo a tiro. O marxismo é uma infecção, não sabia? Por momentos pensei na família, nos amigos do coração, guardei o 45 no coldre da minha mente, e disse que não sabia.

Vitor Jorge

FRAGMENTOS DO PASSADO PRESENTE 2

FRAGMENTOS DO PASSADO PRESENTE                              

«Pecado»

O chá está fraco e a manteiga não esteve no frigorífico porque não havia. Está asquerosamente mole. Ninguém imagina quão importante é para mim o pequeno almoço, estou a crescer tenho seis anos de idade. Prefiro comer a torrada natural a deitar-lhe por cima essa porcaria. Naquele dia a torrada tinha sabor a hóstia. Com seis anos já comungava,  até aos dez na pequena igreja da aldeia onde nasci. Era bonito o pátio da casa da avó. Dali se via a igreja e adro branquinhos no contraste e pacatez do verde da aldeia. Para mim era dia de poder e glória. Carne e espírito. Deus e Diabo. Vermelhos e brancos. Inocentemente disse ao padre que quando fosse grande ia ser vermelho e mandou-me rezar vinte e cinco ave-marias de urgência. Disseram-me: enquanto tiveres a hóstia encostada ao céu-da-boca, podes pedir três coisas. Eu pedi pela saúde de toda a família e uma bola número cinco. Sacrifiquei-me deixando a bola para último, pondo à frente as duas solicitações nobres, contudo, Jesus nunca me conseguiu a bola. Com a saúde cumpriu, ao menos por um tempo. Em matéria de religião, foi a única época feliz, porque Deus não era ainda a nebulosa em que depois se iria transformar. Uma nebulosa cada vez mais divertida. Era um Deus feito pessoa, com barba e tudo. Além disso, a igreja era uma espécie de sedativo, sobretudo no verão. Não tenho nenhum pecado, disse no confessionário. Filho, não é preciso ser tão soberbo, por acaso não lançarás algum olhar pecaminoso para as raparigas da tua escola? A partir desse momento propus-me perder a minha soberba. Não andava fisgado nas miúdas. Mas no dia seguinte fiz todos os possíveis por olhá-las pecaminosamente. Hoje, sim, tenho um pecado, disse no domingo no confessionário. Este padre era mais velho e olhou-me desconfiado. Qual? Olhei pecaminosamente para as miúdas da minha escola. Eu estava coberto de satisfação porque havia vencido a minha soberba. Não há que ser soberbo, disse então o padre mais velho, nunca te orgulhes de ser pecaminoso. Rezei em aflição os trinta pais-nossos e saí a correr. Abri o dicionário na palavra «pecaminoso»: pertencente ou relativo ao pecado ao pecador. Um pouco mais acima estava a palavra «pecado»: feito, dito, desejo, pensamento ou omissão contra a lei de Deus e seus preceitos. Sim, claro, eu tinha olhado as miúdas com omissão, no entanto não omito a manteiga toda mole,e rançosa. Oh que bom é sorrir. Acabou o pequeno almoço e tenho o estômago gloriosamete revolto.

(Publicado, porque todas as histórias merecem ser contadas)

Vitor Jorge