sexta-feira, 3 de agosto de 2018

FRAGMENTOS DO PASSADO PRESENTE 1

FRAGMENTOS DO PASSADO PRESENTE

Para quê escrever estes rascunhos? Quando os anos se sucedem, uma pessoa começa a ter noção de que o tempo foge, e talvez por isso alimente a auto-ilusão de que escrever sobre o quotidiano pode ser uma forma, mesmo que primitiva, de travar esse descalabro. Não se consegue travá-lo, claro. Nada nem ninguém é capaz de parar o tempo.
No entanto, há tantos factos e imagens que desfilam diante dos nossos olhos (paisagens, notícias, alegrias, rostos, leituras, surpresas, desgraças, riscos, luxos, multidões) e que de certa maneira nos alteram a vida, mesmo que seja apenas em milésimos do rumo predeterminado. Dias ou meses depois, é provável que lamentemos, se responsáveis, não ter apontado esses momentos e vicissitudes.
A verdade é que nunca acreditei nos diários íntimos. Creio que são muito poucas as ocasiões em que uma pessoa consegue aflorar a sua própria profundidade em instantes que podem ser maravilhosos ou assustadores. Mas isso talvez aconteça três ou quatro vezes ao longo de uma existência. De forma que não vale a pena simular que se alcança essa profundidade diariamente, quando na melhor das hipóteses, apenas se chega ao primeiro subsolo.
Afinal não é tarefa pequena ser honesto na transmissão do que se vê, se toca, se prova, se cheira, se ouve. Gostava que estes rascunhos fossem como um caderno de navegação, como me ensinou Agostinho da Silva, mas dos sentidos, e destinado a incluir também as eventuais reflexões provocadas por essas sensações e tacteamentos no vestíbulo da intimidade.
Hoje, no café, tive duas conversas um tanto inquietantes. A primeira foi com um norte-americano oriundo do Iowa. Pensei que seria subgerente ou terceiro vice-presidente de uma qualquer empresa de meia envergadura. Se fosse de um nível elevado, não estaria neste café. De qualquer forma, perguntou-me se eu lhe conseguiria arranjar callgirls, e eu disse-lhe que não, que esse tipo de "serviço" era prestado em grandes metrópoles, além do manifesto de ofendido. Respondeu que era uma pena porque gostava mesmo deste país, (ilhas). Perguntei-lhe porquê e ele disse-me que era por não ter pretos, o que lhe dava a garantia de que qualquer callgirl seria seguramente branca. Ainda esclareci que neste país havia uma percentagem considerável de pessoas de raça negra. Celebrou ruidosamente essa (percentagem considerável) porque poderiam ser esmagados a qualquer momento. Perguntei-lhe o que fazia. Para minha surpresa não era subgerente nem terceiro vice-presidente mas sim professor de Filologia. Saí do local apressadamente para evitar desgraça maior, para vomitar cem passos adiante, já em casa. O outro encontro de acaso foi  com um político da extrema direita portuguesa. Os nossos políticos veteranos deste teor foram injectados com o vírus salazarista, que pode gerar um tumor de acomodação e até um crescimento descontrolado e irreversível de células "democráticas". Este país está a desfazer-se e antes que seja tarde será necessário refazê-lo a tiro. O marxismo é uma infecção, não sabia? Por momentos pensei na família, nos amigos do coração, guardei o 45 no coldre da minha mente, e disse que não sabia.

Vitor Jorge

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