FRAGMENTOS DO PASSADO PRESENTE
«Pecado»
O chá está fraco e a manteiga não esteve no frigorífico porque não havia. Está asquerosamente mole. Ninguém imagina quão importante é para mim o pequeno almoço, estou a crescer tenho seis anos de idade. Prefiro comer a torrada natural a deitar-lhe por cima essa porcaria. Naquele dia a torrada tinha sabor a hóstia. Com seis anos já comungava, até aos dez na pequena igreja da aldeia onde nasci. Era bonito o pátio da casa da avó. Dali se via a igreja e adro branquinhos no contraste e pacatez do verde da aldeia. Para mim era dia de poder e glória. Carne e espírito. Deus e Diabo. Vermelhos e brancos. Inocentemente disse ao padre que quando fosse grande ia ser vermelho e mandou-me rezar vinte e cinco ave-marias de urgência. Disseram-me: enquanto tiveres a hóstia encostada ao céu-da-boca, podes pedir três coisas. Eu pedi pela saúde de toda a família e uma bola número cinco. Sacrifiquei-me deixando a bola para último, pondo à frente as duas solicitações nobres, contudo, Jesus nunca me conseguiu a bola. Com a saúde cumpriu, ao menos por um tempo. Em matéria de religião, foi a única época feliz, porque Deus não era ainda a nebulosa em que depois se iria transformar. Uma nebulosa cada vez mais divertida. Era um Deus feito pessoa, com barba e tudo. Além disso, a igreja era uma espécie de sedativo, sobretudo no verão. Não tenho nenhum pecado, disse no confessionário. Filho, não é preciso ser tão soberbo, por acaso não lançarás algum olhar pecaminoso para as raparigas da tua escola? A partir desse momento propus-me perder a minha soberba. Não andava fisgado nas miúdas. Mas no dia seguinte fiz todos os possíveis por olhá-las pecaminosamente. Hoje, sim, tenho um pecado, disse no domingo no confessionário. Este padre era mais velho e olhou-me desconfiado. Qual? Olhei pecaminosamente para as miúdas da minha escola. Eu estava coberto de satisfação porque havia vencido a minha soberba. Não há que ser soberbo, disse então o padre mais velho, nunca te orgulhes de ser pecaminoso. Rezei em aflição os trinta pais-nossos e saí a correr. Abri o dicionário na palavra «pecaminoso»: pertencente ou relativo ao pecado ao pecador. Um pouco mais acima estava a palavra «pecado»: feito, dito, desejo, pensamento ou omissão contra a lei de Deus e seus preceitos. Sim, claro, eu tinha olhado as miúdas com omissão, no entanto não omito a manteiga toda mole,e rançosa. Oh que bom é sorrir. Acabou o pequeno almoço e tenho o estômago gloriosamete revolto.
(Publicado, porque todas as histórias merecem ser contadas)
Vitor Jorge
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