FRAGMENTOS DO PASSADO PRESENTE (5)
Monólogo de um general no dia 23 de Abril de 1974
Olha amigo, vocês que tem Marx preso com alfinetes e enchem a boca com o conceito da mais-valia relativa, poderiam recordar de vez em quando que Marx fala da economia política, das ciências da riqueza, como de uma verdadeira ciência moral, a mais moral de todas as ciências. Não vos ocorre que, embora o marxismo denuncie a alienação do indivíduo sob o regime capitalista, na realidade também está a propor uma mudança da categoria dessa ciência moral? O que fariam, tu e todos os teus revolucionários desengravatados, com a possibilidade de uma mudança de estrutura, como tanto gostam de dizer, e com a imediata entrega dessa estrutura recém-mudada a uma quadrilha de tipos imorais, ambiciosos, manipuladores, desleais? Parece-me formidável que mudem a estrutura, mas zelem para que simultaneamente se transforme a categoria moral deste povo, caso contrário a mudança vai-se desmoronar, e a evolução ou revolução ou o que quer que seja terá sido inútil. Não te ocorreu pensar que neste país existe uma grande apatia política, um colectivo encolhimento de ombros, devido talvez ao facto de as inexistentes conquistas sociais não terem sido dadas a um povo que também nunca as ousou reclamar?
Todos vocês são assim: aparentemente vêem claro mas no fundo são destrutivos. Só servem para inventariar os defeitos, as carências.
Não Vitor, a diferença é só de ritmo. Eu acho que a única transformação eficaz virá pela educação política, e esta requer o seu tempo. Tu, em troca, achas que a mudança será repentina, que amadurecerá subitamente, sei lá eu. Recordo claramente que antes de 20 anos tudo parece urgente, e é certo, é urgente. Mas o reconhecimento de que uma necessidade seja peremptória nem sempre significa que a solução seja iminente. Oxalá tenham razão, tu e os teus camaradas, mas para mim só existem duas vias para adquirir consciência política: uma é a fome e a carência, a outra é a educação. Nós não sofremos fome nem carência, pelo menos não o sofremos como na África, e, por outro lado, não fomos convenientemente educados. Daí que nos importe tão pouco a verdadeira transformação política e, em troca, nos importe tanto o fenómeno político bastardo, adulterado. Quando digo isto, penso na pobre ambição burocrática, na rede de clubes, no grande nirvana dos reformados, na corrupção ao desbarato. Vocês fazem os vossos planos sobre a base de um povo que previamente idealizam, mas esse mesmo povo não deu ainda à idealização que vocês decretam. E acredita que isto que te estou a dizer não vai contra o povo nem contra vocês. Vocês são incríveis e tem as melhores intenções, reconheço-o, mas metem a pata na poça quando só tem esquemas económicos, ainda por cima alheios, e se esquecem da realidade básica: o povo também é incrível, há nele uma excelente matéria-prima mas antes que esta matéria-prima seja utilizável, é imprescindível educá-lo. Aqui quase todos sabem ler e escrever, mas não sabem pensar politicamente se não for em termos de empregos públicos ou de reformas. Há coisas que se arranjam em slogans, mas outras não. Se vos fosse possível fazer uma sondagem sobre reforma agrária, por exemplo, ieis descobrir que os seus defensores mais entusiastas são os profissionais, os intelectuais, os estudantes. Sempre classe média para cima, a maioria deles com um apartamento no seu activo imóvel. Mas convido-te a percorreres o campo, e se encontrares um camponês, jovem ou velho que não se assuste quando lhe mencionares a reforma agrária, ou que não afaste contundentemente essa possibilidade, terás de ser condecorado, ou, mais simplesmente ainda, não acreditar em ti. Convence-te de que, agora pelo menos, o nosso peão de exploração agrícola não tem sentido da terra, gosta de se sentir nómada. Esse é o teu precário e aventureiro conceito de liberdade, saber que hoje pode fazer uma domaçao aqui, amanhã uma tosquia acolá, saber que não está ligado a nada, ou pelo menos acreditar que não está. E agora sai, porque não posso estacionar. Obedeci, compungido, com a minha convicção inabalável, e um clic do gravador que em fita magnética registou este extenso monólogo.
Vitor Jorge
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