sexta-feira, 3 de agosto de 2018

FRAGMENTOS DO PASSADO PRESENTE 3

FRAGMENTOS DO PASSADO PRESENTE

"Amuletos da sorte"

O primo Bartolomeu brincava comigo na ribeira e matagal contíguo. Não o vi mais, mas não me importou demasiado e continuei a brincar sozinho. Com pedrinhas, caracóis, com uma tábua de pregos enferrujados. Pensei que ele tinha voltado para casa. De repente vi a ferradura. A tia Maria aconselhava atirar as ferraduras para trás, sem olhar: isso trazia sorte. Então eu peguei na ferradura, para maior garantia tapei os olhos e lancei-a por cima do meu ombro. Ouvi dois segundos depois um grito agudo, e depois mais nada. Sim, tinha acertado na cabeça de Bartolomeu. E ele tinha desmaiado. Mataste-o, dizia a tia Maria quando chegou a correr, mataste o meu  bebé, o teu priminho, menino assassino. O corpo de Bartolomeu estava frouxo e o seu rosto exibia uma impressionante palidez quando o tio Francisco o levava em braços eu corria atrás, chorando e reclamando aos gritos: Que abra os olhos, diz-lhe que abra os olhos. Mas o bracinho continuava pendurado das costas do tio Francisco, como se a mão quisesse entrar no bolso do casaco de cotim. Depositaram-no sobre a cama e eu chorava, tentando explicar que não sabia que ele se tinha escondido. Diz-lhe que abra os olhos; diz-lhe tio. Pensei sinceramente que o tinha matado e a ideia tornou-se-me insuportável. A tia Maria punha-lhe panos de água fria na testa e o tio Francisco fazia-o cheirar amoníaco. Quando passados poucos minutos Bartolomeu abriu primeiro um olho, depois o outro, e disse queixoso: Ai como me dói, quem foi?; quando eu vi que vivia, rebentei numa gargalhada eléctrica e comecei a dizer à tia Maria: Viste, tia, eu não o matei, ele tinha-se escondido, eu atirei a ferradura para trás sem olhar, como tu me ensinas-te, mas não trouxe sorte ao Bartolomeu nem a mim. E ela riu, ainda chorando, mas já sem rancor, e abraçou-me: Ai, meu filho,
graças a Deus que não aconteceu nada, sabes quão horrível seria se tivesses matado o teu priminho? No entanto, alguns anos depois, quando o Bartolomeu realmente morreu vítima de um terrível acidente, esmagado pelo enorme tronco de uma árvore, não me lembrei daquela vez que o tinha visto frouxo, vencido com o braço pendurado e as pontas dos dedos a dois centímetros do bolso do tio Francisco.
Sorte? Duas décadas depois, matava para me salvar, porque o país só tolerava gestos desumanos, insossos e servis. Sinto-me como um destinatário universal da repulsa; asquerosamente sózinho,  naufragado numa ilha levada pela sorte individualista.
Continuo a olhar o espectáculo do mar do canal, com cinco velas desafiadoras e erectas e uma só nuvem branca afiada, apoiada sobre o dorso do horizonte; acariciada por mim, beijada por mim quase sem palavras, sem amuletos da sorte.

Vitor Jorge

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