domingo, 12 de agosto de 2018

FRAGMENTOS DO PASSADO PRESENTE (4)

FRAGMENTOS DO PASSADO PRESENTE (4)

Comoções

Nada se move aqui. Não há ruido, nem sequer buzinas. As persianas deixam passar uma luz débil. A perna de Aline  fora do lençol ainda me comove. Melhor dizendo, desde há uma semana que tudo me comove. No café, a funcionária carnuda comove-me, mas não graças à sua carne envergonhadamente oferecida ; antes me comove apenas pela sua categoria servilista. Na rua comovem-me os  mendigos que exibem as suas chagas convenientemente escondidas na sua total descapitalização. No meu dia social comovem-me as pessoas que me falem do quão maravilhosa deve ser New York ou o turista um pouco menos impessoal que pergunta timidamente que significado simbólico  tem a fealdade abusiva do edifício da Assembleia Regional dos Açores em contraponto com a magnificência da Biblioteca João José da Graça. À tarde quando passo pela rua principal desta mui nobre cidade da Horta comove-me a multidão de pessoas tentando caminhar num passeio variável entre os vinte centímetros e o metro de largura desafiando a cada passo o atropelamento pela obrigação de sair para a via onde circulam viaturas de dimensões e velocidades variáveis. À noite quando me instalo comodamente na insónia, comove-me a minha paciente e pormenorizada reconstrução de uma sociedade atípica, despretensiosa, arrulhando pelas esquinas bem me queres, mal me queres. Snipers armados até aos dentes disparando rockets fulminantes contra os governantes mortos de riso dos alorpados. Em qualquer momento quando a Yo desperta e me toca, ou vice versa, comove-me o seu pobre corpo que conheço tão bem, o sinal pequeno que vem depois do sinal grande, a zona áspera em redor do mamilo, a cicatriz à altura do apêndice, a vértebra que forma um promontório levemente maior que o das outras, o sexo morno, os joelhos lustrosos. Onde estarei amanhã? Hoje é o dia. Dia dos desassossegos, da luta, da fraternidade, da ancia desmedida de amar, tudo e todos, sem condição. Comove-me este teatro de perdas e enganos neste suspiro comovente que é a vida, mas irradiando volúpia requalificada.

Vitor Jorge

Sem comentários:

Enviar um comentário