FRAGMENTOS DO PASSADO PRESENTE
A VOZ DO MEU SILÊNCIO
Porque serei tão calado? Quanto mais falam aqueles que me rodeiam, menos vontade tenho de dizer alguma coisa. Talvez seja este o significado destes rascunhos que retomei ao fim de alguns anos. Dizer alguma coisa. Não sei com quem falar acerca da Luísa. Às vezes penso que a Maria, o João, o José, compreenderiam, mas estas pessoas tem mais que fazer. A Cláudia está bem. Esforça-se por acompanhar-me e não quero magoá-la. É verdade que não falo muito com ela. O meu corpo fala com o seu e talvez isso seja suficiente. Será? Confesso que me mantém vivo, me desentedia o tédio. Nem sequer lhe disse que a sua barriga é uma delícia. Hei-de dizer-lhe. Prometo. Ela também não é muito faladora. Afinal de contas, para quê falar quando fazemos amor? Com a Luísa a festa era outra. Para começar, era festa. Ela não só tinha prazer como se divertia. O nosso acto era alegre. Não faz mal rir em pleno orgasmo. Sinto muita falta da festa. Aí reside o segredo. A Luísa não era calada, e eu também não o era nos tempos da Luísa. Provocava-me com perguntas. Fazia-me pensar. A Cláudia, pelo contrário, quando fala dá logo as respostas. Respostas a perguntas que eu não formulei. A Luísa era insegura. A Cláudia é seguríssima. Eu estava seguro da minha insegurança. Que confusão. Hoje estive a fazer contas sexuais. A verdade é que passei por poucas mulheres. Por fidelidade? Por preguiça? Não sei. Só contei oito. Nos meus sessenta e cinco anos não é propriamente um recorde para o Guinness. Das outras, quero dizer, das ilegais, cinco foram apenas breves escalas. Não me deixaram marca. A que me deixou alguma coisa foi aquela Aline. Talvez eu não tenha sabido mantê-la. Das outras lembro-me dos seios, do sexo, das pernas. Da Aline, lembro-me dos seus olhos. Mais do que dos seus olhos, do seu olhar. Olhava-me como se quisesse dizer alguma coisa sem dizer. Nunca a vi chorar. Às vezes dizia-lhe coisas duras, a roçar o ofensivo, para ver se chorava. Mas ela só me olhava profundamente, mas sem lágrimas. Terei alguma vez sido feliz? Antes da Luísa perdi a Aline. A pobre Luísa apagou-se sozinha. E agora existe a Cláudia, que sabe acompanhar-me. A dúvida é se seremos um casal. Acho que sim, mas não deveria duvidar. Parece-me. Porque terei mudado de casa tantas vezes? Passei por mais casas que por mulheres. Escrevo estes rascunhos aqui sentado junto ao mar. Não são para ninguém, nem sequer para mim. Não me são indispensáveis. Poderia viver sem os escrever. Na verdade isto não é escrever. É apenas dizer alguma coisa num papel (rede social). Tive o melhor emprego que desejei. Só pelo previlégio de lutar pela liberdade e democracia universais. Dou-me bem com todas as pessoas. Normalmente dou-me melhor com quem me é afastado do que com quem me é próximo. Uma onda graciosa espraia-se em rendilhada espuma branca, vestindo as pedras negras. Que elegância. Acompanha-me bem como a Cláudia. Um galo canta longíssimo e depois outro, mais perto. Muitas vezes tenho vontade de responder-lhes. Mas só sei emitir cacarejos humanos, não sei cantar como o galo. Victor Jorge
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