quarta-feira, 14 de novembro de 2018

PRETÉRITO IMPERFEITO

PRETÉRITO IMPERFEITO

Peguei a cadeira de baloiço, pu-la em frente à janela e ali fiquei sentado umas duas horas. Só. Em silêncio. Sem o ter especialmente premeditado, e com uma inesperada capacidade para manejar o meu próprio caos, comecei a peneirar o meu pretérito imperfeito, isto é, o meu passado não perfeito, rudimentar, indeciso, deficitário, trapalhão, destorcido, vulnerável, quebradiço, negligente, etc. O que tinha eu feito até agora? O mundo consome-se e despedaça-se em guerras estúpidas. Milhões de mortos, e eu, que faço? Que faço nesta cadeira de baloiço a contemplar a desolação? Sou um exilado da minha vida passada. Chego a pensar que contas feitas a consciência é simultaneamente o nosso céu e o nosso inferno. O famoso juízo final somos nós que o fazemos, dentro do peito. Todas as noites, sem termos consciência disso, enfrentamos um juízo final. E é conforme a sua sentença que conseguimos dormir descançados ou rebolamos em pesadelos. Nem Salomão, nem psicanalista. Somos juiz e réu, acusação e defesa, que remédio?! Se nós mesmos não sabemos condenar-nos ou absolver-nos, quem poderá fazê-lo? Quem tem tantos e tão recônditos elementos de juízo sobre nós mesmos como nós mesmos? Não saberemos, desde o início e sem a menor hesitação, quando somos culpados e quando somos inocentes? O que, ou quem não estará ameaçado neste contexto e nesta época? Vive-se e sempre, se viveu sob ameaça. A morte está dentro da vida, alguém disse. É verdade: a morte está dentro da vida. Mas podemos mandá-la de férias, não? Trabalha tanto que bem as merece. E não sintamos a sua falta, porque de qualquer forma voltará, e quando voltar tocar-nos-á no ombro. Mesmo dos milhares "imortais".

Vitor Jorge

Comentarios: Maria Kurtenbach - A tua escrita tao triste quanto poetica..Uma mistura de desistencia e esperanca. Uma porta aberta a todos quantos lutam na vida e sao esquecidos e injusticados juntamente com a inexoravel verdade da vida e da morte..  Como diria Camoes ,um contentamento descontente. Puseste-me triste e ao mesmo tempo deste-me esperanca. Escreve mais!

José Cipriano Catarino- Gostei muito. A condição humana tão bem retratada. Abraço

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