terça-feira, 20 de novembro de 2018

O MEU PRIMEIRO CONTO

FRAGMENTOS DO PASSADO PRESENTE

O MEU PRIMEIRO CONTO (1973)

Frequentava na época a residência de um casal de professores universitários, que me recebiam e acarinhavam como se fosse membro da família. Um dia tomei de assalto a minha coragem, tirei do bolso duas folhas de papel manuscritas, e disse: escrevi um conto. Justifiquei.
É um pequeno conto não sei se presta. Talvez seja fruto das minhas fadigas e desencontros religiosos. Tossi suavemente para aclarar a voz, e iniciei a leitura do meu conto.

"Um santo milagreiro. Era isso que ele era. As beatas da aldeia juravam que o tinham visto suar, sangrar e chorar. Na vila próxima, uma agência turística organizava excursões para mostrar o Santo. Para uns tratava-se de São Miguel; para outros, de São Domingos ou de São Bartolomeu, e não faltou quem afirmasse que se tratava de um São Sebastião, um pouco estranho, já que lhe faltavam as setas. E como a própria Igreja não chegava a um acordo, a paróquia decidiu chamar-lhe O Santo e mais nada. Fosse o que fosse, o pároco estava encantado com a inundação de esmolas. Adélia não veio em excursão. Ela e os seus pais viviam desde sempre na aldeia, o que significava que conhecia o Santo desde criança.
A sua imagem tinha estado presente desde os seus primeiros sonhos infantis. Agora tinha dezassete anos e era a rapariga mais bonita em várias léguas das redondezas. Também o Santo era bem-posto e quando Adélia ia à capela e se ajoelhava diante do altarzinho lateral onde o Santo morava, a sua devoção tinha traços subtis de amor humano. Numa manhã de segunda-feira quando o templo estava deserto, a rapariga aproximou-se do Santo, olhou-o demoradamente e desta vez o seu suspiro foi profundo. Depois aproximou-se e começou a beijar minuciosamente aqueles sólidos pés de gesso. Depois acompanhou os seus beijos com carícias nas pernas descascadas.
De repente, sentiu que alguma coisa lhe molhava o braço. Ao princípio não queria acreditar, mas era verdade. Um milagre inédito, afinal. Porque aquilo não era choro nem sangue nem suor. Era outra coisa."

Que acha? Perguntei em profundo suspense à insigne  professora.
Não sei. Fiquei um pouco confusa. Tenho a impressão de que decorre numa linha de fronteira. Mas é uma fronteira que não costuma surgir na literatura: é a que separa a religião do erotismo.
Levantando as sobrancelhas, inquiriu o marido sobre a sua opinião.
Eu gostei, talvez precisamente por se passar nessa fronteira. O Santo humaniza-se. Nessa última linha deixa de ser gesso para ser carne. Então o que dizer ao Victor?
Então, isso mesmo.

Victor Jorge

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