Este blogue é tão-somente a minha “página” na Internet.Não sou o dono da razão, nem da verdade,sou mais um ser humano e tenho “defeitos” como todos os outros. A minha escrita por vezes, poderá ser cáustica, e satírica, escrevo assim por gosto, por amor incondicional pela escrita, natureza, humanidade, paz, liberdade, justiça social, e um mundo novo, exequível. Se o meu amor for "pecado" estou a residir no planeta errado ! BEM VIND@S A TOD@S QUE VIEREM POR BEM ! vitor jorge
domingo, 29 de dezembro de 2019
O FIM DA MINHA PORKY
terça-feira, 26 de novembro de 2019
INVETERADOS
terça-feira, 12 de novembro de 2019
SÍMBOLOS DE UMA VIDA
quarta-feira, 23 de outubro de 2019
MEDITAÇÃO
Nada se move aqui. Não há ruídos. As cortinas cerradas deixam passar uma luz débil. Estará nublado? Melhor. Hoje preciso, como de pão, de um dia nublado. Esta avalancha de silêncio é insuportável. Melhor dizendo, desde há quarenta anos que tudo me comove. Uma única alegria cálida acaricia a minha mente, mas que bom saber que alguém teve tomates suficientes para não se vender.
Vitor Jorge
sexta-feira, 18 de outubro de 2019
AO REDOR DE MIM
domingo, 1 de setembro de 2019
Sumir ou somar-se
Sumir ou somar-se? Apago os outros ou chamo-os?
A solidão é uma fraude. Vou comer o meu próprio vómito, como o camelo? Que risco corre o masturbador? Quando muito o de arranjar uma entorse no pulso.
A realidade, os outros: alegria e perigo. Chamo os touros, aguento-lhes a investida. Eu sei que aqueles cornos ferozes podem dar-me cabo da femoral.
Converso sobre estas coisas, em longas noites, com amigos que já partiram. E em longas cartas (ainda as manuscrevo) de profundos repúdios endereçadas aos assassinos de ideias, da cultura do silêncio, da multiplicação da impotência e da sementeira do medo.
Vitor Jorge
HORTA PRAÇA DO INFANTE (memórias)
HORTA, PRAÇA DO INFANTE
(memórias)
Juntei lenha, e água da bica.
Prove, mestre. Está no ponto.
Hmm.
A sério que gosta?
Está uma maravilha, mano.
Conseguimos algumas linguiças do Pico muito saborosas, alguns polvos, mesmo junto à muralha. Valia a pena reter na boca o paladar delicioso. Depois passamos para o assado cortando pequenos pedaços na brasa, e comendo-os aos poucos, como deve ser. Engasgamo-nos um pouco, mas de riso. Nem deixámos o vinho respirar, duas garrafas de vinho de "cheiro tinto", saboreamo-lo e sentimo-lo a escorregar, tíbio, expesso, pelo estômago e pelas veias.
Comemos, bebe-mos até não restar um pedacito no churrasco. Mestre Feijó agarra o último bocado com a ponta da navalha. Olho para ele, olho-o com olhos de cachorro abandonado e penso: "Vai comover-se", mas ele engole-o impávido.
Depois deitamo-nos na relva, com o sol na cara e a Ilha inteira para nós. Fumamos. Não havia mosquitos.
A brisa fazia assobiar as copas das palmeiras. De vez em quando ouvimos ali pertinho um chapinhar de remos, e sonoras gargalhadas de crianças brincando nos baixios com a baixa-mar, depois adormeci e sonhei. Vinha-mos na lancha Espalamaca, Madalena Horta. Estáva-mos sentados lado a lado no comando à conversa. Desse lado não estava mais ninguém. Os restantes passageiros estavam todos juntos nos bancos da popa, distantes de nós. Não eram passageiros comuns. Membros do governo regional, e um séquito enorme de engenheiros, e outros mediadores do futuro.
Nisto olhei para eles e achei-os estranhos. Estavam imóveis e mudos e eram todos exactamente iguais. Disse a mestre Feijó. Espere, e fui até à popa. Toquei num dos passageiros e, ploc, ele caiu no convés. Ao cair, soltou-se-lhe a cabeça de gesso. Gritei para mestre Feijó: atire-se, atire-se, e eu também mergulhei. Nadámos debaixo da água. Quando vim à tona, vi-o. Tornámos a mergulhar e continuamos a nadar desesperadamente. Estávamos muito longe quando a lancha voou em pedaços. Eu senti a explosão e vim à tona: vi o fumo e as chamas. Mestre Feijó estava a meu lado. Abracei a sua memória e acordei, lavado em lágrimas.
Vitor Jorge
Magia de um olhar
Atravessando o atalho exíguo, chego à beira do mar, por todos os lados.
Esta é uma manhã de Verão de luz limpa. Corre uma brisa suave. Da chaminé da casa de pedra, o fumo solta-se e ondula. Na água navegam golfinhos. Uma vela branca desliza pelo horizonte.
O meu corpo tem, esta manhã, o mesmo ritmo da brisa, do fumo, dos golfinhos e da vela, que a sós, sinto e vejo.
Plano de extermínio (verde)
Plano de extermínio: destruir a relva, arrancá-la pela raiz até à última planta ainda viva, cobrir a terra com betão, pedra, alcatrão.
Depois, matar a memória da erva. Para colonizar as consciências, suprimi-las; para as suprimir, esvaziá-las de passado. Aniquilar qualquer testemunho de que na região houve mais do que silêncio cárceres e campas.
É proibido recordar.
Vítor Jorge
terça-feira, 13 de agosto de 2019
ALEGORIA DO FANTÁSTICO
ALEGORIA DO FANTÁSTICO
Finou-se hoje mais uma edição da Semana do Mar 2019.
Estão de parabéns a comissão de festas, e presidente da Edilidade Faialense pela dedicação a este evento maior deste pequeno burgo. De facto, a Semana é composta de múltiplas vertentes lúdicas, no mar e em terra nem sempre a contento do povo local e de quem nos visita. Festa é festa, e cada qual guardou da mesma os maiores proventos possíveis na diversidade proposta.
No mar, considere-se uma aposta razoável, em terra, muitas contradições, mais do mesmo mais. Louvável a tentativa de erradicação dos plásticos poluentes, o cuidado atempado das recolhas do lixo dos contentores públicos e respectiva desinfeção (apenas durante a festa), limpeza do recinto e áreas envolventes, (excepto os vómitos e vasilhame da consequência).
Insolúveis prevalecem os suplícios do trânsito automóvel, a ocupação da avenida marginal, o ruído infernal das tendas de diversão noturnas, uma fórmula contra natura de poluição que o edil não considera. Assim, fica anulada a tentativa anti poluta que com tanto alarde se tentou fazer passar, em vão.
Em maré de poluição fica a nódoa da Praia de Porto Pim, que o mar não lava, porque a fonte permanece activa. Esteve muito bem o edil naquilo que melhor sabe fazer: discursar, pese embora alguma gaguez em diversas circunstâncias, o óbvio. A arte politiqueira disse presente nos dez dias festivos. Promessas, e para o que estas não são capazes de cumprir, o apelo à esperança das gerações futuras, para esta, nada de novo.
Ampliação do aeroporto, construção do novo porto, saneamento básico, áreas pedonais, reparação de vias e passeios degradados, um ror de necessidades básicas fundamentais ao desenvolvimento desta ilha. "Não há dinheiro", insistem os velhos do Restelo da orde PS, enquanto isso, ardem milhões em obras puramente eleitoralistas que não trazem tranquilidade menos bem-estar a este povo que persiste em lhes estender a passerelle.
No prosseguimento das obras da "frente mar" olvidou-se algo fantástico: a ligação das duas baías através da Rua Nova, a aquisição de gôndolas, e reduzir o desemprego com o pessoal a cantar o sole mio, isto se os "olheiros" da metereologia forem favoráveis.
O progresso e felicidade de qualquer povo passa sempre pela solução das suas necessidades básicas e prioritárias, pela boa vontade e compromisso concreto, nunca pela fantasia partidária em benefício degradante dos próprios.
Festejar sempre, com a coerência e propósito de servir o eleitorado. Esta estratégia vigente está condenada a uma mera alegoria do fantástico.
Vitor Jorge
quinta-feira, 1 de agosto de 2019
O MELHOR VESTIDO DE NOIVA É A PELE
SINTESE DE RESULTADOS OFICIAIS FORNECIDOS PELA REGIONAL DIREÇÃO DOS ASSUNTOS DO MAR
"1-Praia de Porto Pim, no Faial, reabre quarta-feira, 31 de julho, à prática balnear, depois de ter estado interdita a banhos devido a um fenómeno tópico e espacialmente restrito de contaminação por bactérias fecais.
2- A Direção Regional dos Assuntos do Mar (DRAM), na sequência de um reporte informal de que várias crianças teriam tido alguns problemas de pele, embora sem gravidade, após terem frequentado a Praia de Porto Pim, contratou o Instituto Ricardo Jorge para proceder à recolha de amostras de areia em diversos locais da praia, sendo que os resultados preliminares indicaram a presença de contaminação bacteriológica em algumas zonas do areal.
3- O técnico especialista do Instituto Ricardo Jorge recolheu uma amostra de areia junto ao paredão sul da praia e outra amostra, composta em quatro áreas, ao longo da praia.
4- Refira-se que, por lei, não é obrigatório fazerem-se análises de areia das zonas balneares.
5- Os resultados das análises indicaram, sem margem para dúvida, a existência de um foco de contaminação fecal, junto ao paredão da praia.
6- Perante esta situação, a DRAM convocou as autoridades competentes, nomeadamente a Delegada de Saúde Concelhia da Ilha do Faial, a Polícia Marítima e o Parque Natural da Ilha do Faial, bem como a Câmara Municipal da Horta, para ser desenhado um plano de ação para mitigar a contaminação por bactérias fecais (Escherichia coli e Enterococos intestinais).
7- Paralelamente, a DRAM intensificou também a monitorização regular daquela água balnear, em especial na proximidade do foco de contaminação, tendo-se verificado que se encontrava em boas condições para banhos.
8 - Por outro lado, o Parque Natural da Ilha do Faial desenvolveu todos os esforços para identificar e conter a origem da contaminação, tendo-se concluído que se devia a uma deficiência de uma caixa de passagem do sistema de fossas do bar da Fábrica da Baleia, que foi imediatamente reparada, através da sua impermeabilização.
9- A interdição da Praia de Porto Pim revela que o sistema de monitorização das zonas balneares dos Açores é eficaz, permitindo que a sua utilização seja feita em segurança.
10- Refira-se ainda que o processo entre a recolha das amostras, a sua análise e a obtenção de resultados leva o seu tempo, tendo sido disponibilizada a informação possível, de modo a evitar especulações e interpretações erróneas."
(Na minha nota anterior "DEIXA ANDAR QUE LEVA AZEITE", fica infelizmente provada a minha teoria, acrescida da razão que me assiste.)
O MELHOR VESTIDO DE NOIVA É A PELE
Persigo a voz inimiga que me ditou a origem de estar triste com esta situação de viver numa região onde reina o inverosímil. Às vezes, dá-me para sentir que a alegria é um delito de alta traição, e que sou culpado do privilégio de continuar vivo e livre.
Nessa altura, faz-me bem recordar o saudoso e insigne Dr. Luís Decq Mota ao verbalizar diante das ruínas provocadas pelo vulcão dos Capelinhos :《As cinzas queriam fazer-nos desaparecer. Mas não conseguiram, porque estamos vivos e isso é o principal》. E penso que o Dr. tinha razão. Estar-mos vivos: uma pequena vitória. Estar-mos vivos, ou seja: capazes de alegria, apesar dos adeuses para outras paragens seja o testemunho de uma outra região e autonomia possíveis, quanto desejáveis.
Aos Açores, tarefa por fazer, não os vamos continuar a erigir com tijolos de merda .
A alegria requer mais coragem que a mágoa.
À mágoa, ao caciquismo local e regional, ao fim e ao cabo estamos habituados, mudos e quedos, na nossa tradicional antropologia da vacuidade. Está visto que se pode proibir a água, a sede não.
Vitor Jorge
quinta-feira, 18 de julho de 2019
DEIXA ANDAR QUE LEVA AZEITE
DEIXA ANDAR QUE LEVA AZEITE
Desde tenra idade que escutei esta frase, da boca do meu sábio guru e amigo António, sempre que qualquer assunto que não interesse ao próprio venha à baila. Na circunstância, a Praia de Porto Pim, interdita a banhos, porque só agora foram detectados na areia micro organismos supostamente nocivos à saúde humana. Entretanto nela se rebolaram, brincaram, crianças e idosos vítimas inocentes da indiferença a que este governo Regional nos mantém subordinados. Na prática responsável, o mínimo exigível seria uma análise antes do início da época balnear e constante monitoramento durante a mesma. A irresponsabilidade é grave, em qualquer situação, mas quando se trata da saúde pública não tem perdão. Deem-lhe as voltas que derem a saúde será sempre a prioridade das prioridades de qualquer governo que preze o bem estar dos seus cidadãos, para o dos Açores está no último nível das necessidades. Ao elevado grau de poluição visível, acresce o invisível vindo do mar, da terra, do ar, sem qualquer solução na prática, simplesmente porque se entende dourar as algemas com o azul das hortênsias, o pasto verde, a felicidade das vaquinhas, a abastança de um mar sem peixes, os pôr-de-sol, borrados de photoshop (maioria), os tons venezianos das imagens que se passam para inglês ver, na idiotice de uma aglutinante massificação turística que, em vez de paraíso, se transforma vertiginosamente num inferno de choro e ranger de dentes de todos os que de boa fé acreditaram na redenção do turismo como único colete salva-vidas da nossa prosperidade.
As reconversões da casa dos Dabney, ali mesmo à beirinha da baía de Porto Pim, o aquário, a Fábrica da Baleia, seriam obras louváveis, não fora a ausência de estudos geológicos na sua concepção, foram construídas fossas sėpticas com vasamento sobre uma das rochas mais permeáveis que existem, como resultado o cheiro nauseabundo de fossa naquela área é insuportável. A cereja no topo do bolo poluítivo está patente nas águas da baía antes límpidas, agora lodosas. Porquê, nesta mesma baía, desapareceram ouriços, e tantos elementos naturais da fauna destas águas ? ! Alguém se interessou pelo fenómeno ? ! Tristes, delapidados, persiste-se no sonho da contemplação do vai-vem das marés também elas eternas noivas em núpcias de rendas vestidas nestes vendavais de poluição e inércia do deixa andar que leva azeite.
Vitor Jorge
terça-feira, 14 de maio de 2019
MAIO TREZE
O dia treze de Maio de 2018 perpetuou-se mais uma vez na história de Portugal. Desta feita com um pleno de vitórias emotivas geradoras de rios de lágrimas, alegrias, e delírios, bem ao gosto do povo que pelo menos por um dia ousou olvidar sob coação mediática os gritos de revolta e angústia com que se manifesta a cada dia contra o estado da política do país, a corrupção, o desemprego, a pobreza, e a perda de regalias sociais de que é vítima passiva. Este estado de euforia rúptil tem antecedentes com quase um século de existência o que poderá ser considerado um acto de tradição ortodoxa transmitido através de gerações. Nesta concupiscência, prevalece Fátima como epicentro da fé, futebol como enfarte, e fado como fatalismo, os "famosos" três F's que continuam a demonstrar uma forte incapacidade evolutiva da nossa cultura como pilar do progresso e desenvolvimento da psique naufragada na manipulação e oportunismo dos antípodas de uma sociedade clarividente na qual nem os paladinos da lógica sobrevivem aos pífios da mediocridade.
Vitor Jorge
domingo, 7 de abril de 2019
A MINHA PRIMEIRA GREVE
MEMÓRIAS DO PASSADO PRESENTE
A primeira greve da minha vida deixou-me cicatrizes. Geralmente, os conflitos do ensino não me preocupavam muito, por mero desconhecimento de causa. Mas a F. P. A. tinha decretado dois dias de greve, os alunos aderiram e eu nem sequer perguntei qual era o motivo. Só pensei que, já que não ia às aulas, poderia aproveitar para devolver ao Lopes um monte de livros que ele me tinha emprestado nos últimos meses. O Lopes vivia ali próximo, na Calçada do Grilo, por isso pus vários Freud, Jung e Adler na pasta que levava diáriamente para as aulas. Pus outros tantos num saco, apanhei um eléctrico, e apeei-me na paragem próxima da escola.
Lentamente (nestas circunstâncias os livros pesam), dirigi-me à Calçada do Grilo. Ali próximo, distingui a figura inconfundível do Tomás, conhecido como o Campeão (tinha ganho várias competições de atletismo para jovens). Fez-me sinal e começou a aproximar-se. O Campeão era bom atleta mas mau aluno. Tinha mais dois anos do que eu, todavia era repetente e estava na minha turma. Diziam que era comunista e era um eficaz organizador de paralisações, greves, protestos, manifestações, etc. Decorria o ano de 1972. Esperei por ele, carregado de livros. Mas quando finalmente chegou ao pé de mim, gritou:
Traidor! Fura greves!
E sem dizer água vai, encaixou-me um tremendo murro na maçã direita do rosto que ficou logo como um farol. Enquanto me baixava para pousar no chão a minha carga de livros e poder defender-me, consegui gritar-lhe:
Então Campeão, o que é que tu tens? Estás doido? Eu não sou, nunca fui traidor!
Ai não? E onde é que tu vais com isso tudo? Não vais para as aulas?
Não, Campeão, vou devolver estes livros ao Lopes, que mos emprestou e vive aqui perto.
Mostrei-lhe a minha carga para que visse que não eram livros escolares. O Tomasito ficou roxo.
Desculpa, magrinho. Como é que eu pude fazer-te isto se sou tão teu amigo, e com tudo o que tu me sopras durante as aulas. Desculpa magrinho, a sério, desculpa.
Desculpei-o, apesar da minha maçã do rosto continuar a fazer uma sinalização que parecia o farol da entrada da barra do porto de Lisboa.
Insistiu muito para me oferecer uma imperial e fomos à cervejaria defronte. Aí, como uma prova de confiança, contou-me a sua história. O pai batia na mãe diáriamente.
E o que é que ela faz?
Chora, só isso.
E tu?
Eu puxo-o pelo braço e afasto-o, mas acaba por me bater também e por me atirar ao chão.
Mas Tomasito, com esse corpo todo que tens...
O meu pai é muito maior do que eu. Além disso não posso nem quero bater-lhe. Só quero é que ele não bata na minha mãe.
E porque é que ele lhe bate?
Diz que ela teve um amante (ele diz <<um querido >>) aí há vinte anos atrás e que até desconfia (isto só acontece quando ele vem bêbado) que não é meu pai. Como é que não é? Somos parecidos como, não digo como duas gotas de água, mas como duas gotas de aguardente. Por isso é que tenho tanta dificuldade em estudar. Com um ambiente destes deves imaginar como é difícil concentrar-me.
Pagou as cervejas e propôs-me (já se tinha convencido de que eu não era um traidor) que nos aproximássemos da escola. Antes passámos em casa do Lopes e deixei-lhe os livros, agora com mais um motivo: não desencadear mais suspeitas infundadas. O Lopes olhou espantado para a minha maçã do rosto mas não disse nada.
Em frente à escola estavam cerca de duzentos estudantes que gritavam palavras de ordem. O trânsito estava cortado e ouvia-se considerável concerto para buzina e orquestra. Foi aí que apareceu um batalhão de pides, com a determinada intenção de pôr termo ao evento, batendo sem dó, e prendendo aliatoriamente. Começaram todos a correr que nem gazelas, mas eu devo ter corrido como uma tartaruga, resistindo sempre, apanhei uma espadeirada nas costas, um rasgão na camisa, e um par de algemas nos pulsos. Enquanto era empurrado com incrível "meiguice" para uma viatura, já não consegui vislumbrar o Tomasito nem o Lopes. Passei duas noites e dois dias no "hotel" da António Maria Cardoso, submetido a interrogatórios e sevícias dolorosas quanto injustas, nesta que foi a minha estreia na arte da inocência.
A meu favor contava um previlégio natural: aprendia rapidamente. A partir daí continuei a minha luta, voltei por diversas vezes à António Maria Cardoso, paguei caro os meus silêncios nos interrogatórios. Resistente, saí sempre vencedor, apanhei-lhes a estratégia da covardia, e a partir daí cresci e apareci, incapaz de julgar um meu semelhante.
Vitor Jorge
"É o indivíduo que não está interessado no seu semelhante quem tem as maiores dificuldades na vida e causa os maiores males aos outros. É entre tais indivíduos que se verificam todos os fracassos humanos".
Alfred Adler
domingo, 24 de março de 2019
SAÚDE PÚBLICA
HOJE: O PARAÍSO COM UM INFERNO OCULTO
Não pretendo com a presente nota provar o que quer que seja, porém no uso pleno da minha liberdade que me assiste, questionar o governo regional dos Açores e a secretaria regional da saúde sobre os silêncios que envolvem e comprometem esta secretaria sobre assuntos tão delicados como a saúde pública. Os casos dos números de óbitos em crescendo vítimas de cancro são assustadores nesta região autónoma, os registados, pelo IPO de Lisboa em indivíduos residentes nesta região, tem vindo a causar perplexidade pelo excesso de casos simultâneos aos clínicos que ali exercem a sua profissão. Será que o governo regional desconhece estes números ? Não é possível! Perante este quadro negro da saúde nos Açores, não terá a secretaria regional da saúde a obrigação cívica e moral de empreender estudos urgentes sobre esta questão no sentido da prevenção da saúde dos seus cidadãos de pleno direito? Os casos designados como infeções hospitalares em crescendo, com vítimas, não merecem da respectiva secretaria um esclarecimento público, e respectiva tomada de posição no sentido de erradicar uma situação impensável na actualidade? Que medidas foram tomadas no sentido de uma saúde pública decente e justa, um direito que está nitidamente a ser violado num silêncio comprometedor ? Será que estamos condenados à lei de Murphy ? Senhor presidente do governo regional dos Açores, senhor secretário regional da saúde, já passa do tempo de assumirem as vossas responsabilidades para com este povo que os elegeu porventura expectante numa posição governativa clarividente que dissipe esta bruma que nos quer vencer. A boa saúde do povo Açoreano é um direito inalienável que convém manter numa condição de dignidade que Vas. Ex.as teimam em menosprezar, remetendo para os desígnios das divindades a solução secular e conformista do povo desta região, que por qualquer anomalia divinal não funciona, quiçá por suprema irritação pela vossa inércia e desresponsabilidade na gestão uniforme e democrática deste paraíso com um inferno oculto.
27/03/2016
Vitor Jorge
sábado, 23 de março de 2019
À CONVERSA COM...
Ontem, e por força de circunstância, estive à conversa com dois proselitistas, adeptos fervorosos do salazarismo. Joguei conversa fora, coisas sem importância de maior, mas que foram, contudo, suficientes para me darem a entender que sentem por mim um desprezo amável e compreensivo, quase piedoso. Imagino que eles, quando se refastelam nos velhos cadeirões da demência, se devem sentir quase omnipresentes, pelo menos tão perto do Olimpo quanto pode chegar a sentir-se uma alma sórdida e escura. Chegaram ao ponto máximo. Para um futebolista, o máximo significa um dia fazer parte da selecção nacional; para um místico, comunicar alguma vez com o seu Deus; para um sentimental, encontrar num outro ser alguma vez o verdadeiro e o dos seus sentimentos. Em contrapartida, para esta pobre gente o máximo é um dia sentar-se nos cadeirões da etocracia, experimentar a sensação (que para outros seria tão incómoda) de que alguns destinos, estão nas suas mãos, ter a ilusão de que resolvem, de que dispõem, de que são alguém. No entanto, ontem, enquanto os observava, não consegui ver neles a cara de alguém mas de algo. Parecem-me coisas, não pessoas. Mas que lhes parecerei eu? Um imbecil, um incapaz, um fraco que se atreveu a recusar uma oferta do Olimpo, um Zé Ninguém. Uma vez, há muitos anos, ouvi o mais velho dizer: " o grande erro de alguns homens de negócios é tratar os seus empregados como se fossem humanos," nunca esqueci, nem esquecerei, aquela frasezinha, pela simples razão de que não a posso perdoar. Não apenas em meu nome mas em nome de todo o género humano. Agora sinto a forte tentação de dar a volta à frase e pensar: "o grande erro de alguns empregados é tratar os patrões como se fossem pessoas." Mas resisto a essa tentação. São pessoas. Não parecem, mas são. E pessoas dignas de uma odiosa piedade, da mais infamante entre as piedades, porque a verdade é que constroem para elas uma casca de orgulho, uma repugnante desfaçatez, uma sólida hipocrisia, mas, no fundo, são ocos. Asquerosos e ocos. E padecem da mais horrível variante de solidão, a solidão daquele que nem a si próprio se tem.
Viktor Jota
quarta-feira, 6 de março de 2019
OS BARBAROS E O PROGRESSO
Os Bárbaros e o progresso
Numa Ilha de
173, 1 km quadrados de superfície rodeada de mar por todos os lados, cerca de 15 000 pessoas habitam esta nesga de terra, com sérias tendências de redução de áreas onde os seus habitantes tenham pleno direito à lógica do livre acesso e usufruto do território que é propriedade dos seus habitantes que pagam alto preço por esse benefício: viver numa ilha, é sonho, poesia, romance, assente sobre a natureza num harmonioso contraste terra - mar desde os primórdios, as nossas gentes sempre labutaram o seu sustento nestas duas áreas naturais, sem constar empírica ou cientificamente qualquer tipo de delapitação da sua fauna e flora ambientais quer em terra quer no mar. Provas disso: caçaram-se cachalotes, golfinhos, pescaram-se atuns e todas as variedades de peixes consumíveis na alimentação, caçaram-se cagarras para engodo e isco; nenhuma destas espécies esteve alguma vez posta em causa de extermínio, idem para as aves migratórias que jamais nos abandonaram. Os consumos foram sempre metódicos e coerentes durante muitos séculos e outras tantas gerações que sobreviveram em consonância responsável com o ambiente; face há actualidade somos forçados a atribuirmo-nos uma classificação indigna de bárbaros. As circunstâncias políticas em que o país viveu não promoveu o desenvolvimento e por conseguinte o progresso necessário. A adesão à União Europeia foi o primeiro passo para uma política vocacionada ao progresso que se supôs igualitário quase "milagroso", porém a realidade nostálgica e ignota esfumou-se nos subsídios para não se produzir ou fazê-lo sob tabelas impostas pela mesma União cuja finalidade e objectivos só agora tem visibilidade negativa, na corrupção e interesses dos grandes banqueiros. Eis que entramos na "era do progresso em alta escala de abundância" do salve-se quem poder e da anarquia de gestões ruinosas dos nossos recursos ilhéus imparáveis, a tão apregoada autonomia e unidade Açoriana nunca existiu, a capital continua sediada em São Miguel apesar dos esforços de manobras de diversão conseguidas e continuadas na submissão estagnada e estupidificante deste povo que persiste em ser espoliado na constante degradação do seu modus vivendi: a pobreza explodiu, dando lugar à anarquia, vale tudo para sobreviver, idealizam-se proibições, interdições sem sentido, que incitam à contrafação e ao descalabro total dispensável. As nossas riquezas marinhas estão reduzidas a quase zero, o pescado eleva-se a preços exorbitantes bem como a carne, proibitivos ao consumidor sem poder de compra, enquanto isso, nenhum pescador vai além da miséria, nem os productores de carne saem da cepa torta. Em agonia aposta-se na venda de um destino turístico em que lucram os mesmos de sempre (São Miguel) as restantes ilhas ficarão à mercê das migalhas e do turista falido.
A persistente e constante gestão ruinosa de todos os governos pós autonomia são a causa que culmina com a actuação do governo actual visivelmente incapacitado de ter uma atitude progressista igualitária e libertadora para com este povo que cumpre com os seus impostos na cega espectactiva sebastianista de que surgindo das brumas haverá uma divindade que lhes valha, na imprevisibilidade dos tempos.
Vitor Jorge
06/03/2016
segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019
UMA ANTIGA NOVA
UMA ANTIGA NOVA
Os nossos corpos, felizes e agradecidos, jaziam imóveis após a união repetida e profunda. A respiração coordenada transmitia uma dupla sensação de plenitude. Só as mãos se procuraram. Já não buscavam as zonas erógenas, que tanto prazer tinham celebrado. Era o momento do sossego, da serenidade.
A Lídia disse:
- Devo ser antiga.
A minha mão moveu-se, interrogativa.
- Sim, devo ser antiga porque no sexo não quero experiências, vanguardismos, posições insólitas, extravagâncias, aberrações. Para mim não há nada mais bonito do que ter-te dentro de mim e que aí trabalhes, osciles, derrames. Devo ser antiga, não achas?
Continuei a olhar para uma mancha de humidade que sempre me fascinou, mas afirmei:
- Gosto das antigas.
- No plural? - perguntou ela.
- Não, no singular. Gosto da Lídia, a antiga mais nova que conheço.
- E tu o que és?
- Eu sou uma velharia.
Na rua soou a sirene de uma ambulância. Ficámos em silêncio até que o alarido se dissolveu na distância.
- Sabes o que a Alzira me perguntou há uns tempos? Que se nos dávamos tão bem como parecia, porque é que não casávamos.
- É um pouco metediça essa senhora, não achas?
- Foi o que eu achei, mas não lhe disse, claro. Ela percebeu que a pergunta me tinha caído mal e tentou voltar atrás.
Mas eu fiquei a pensar.
- A pensar? Não me digas que te queres casar?!
- Só disse que me deixou a pensar.
- Ah!
- E o que é que tu achas?
- Não acho nada. Nunca tinha pensado nisso. Diz-me uma coisa: não estamos bem assim?
- Estamos.
- Então?
- A verdade é que a pergunta da Alzira me pôs a pensar, comecei a imaginar como seria a nossa vida no dia-a-dia se tivéssemos um apartamento só para nós, permanente.
- Se tivermos dinheiro para pagar podemos ter um apartamento, sem a obrigação de passarmos pelo registo.
Agora vinha da rua uma gritaria de mulheres.
- São as velhas da frente. Pregam-se sempre ao fim da tarde. São as minhas vésperas privadas.
Rimo-nos descontraídos.
- E se deixarmos isso ao acaso? - perguntei?
- Queres atirar uma moeda ao ar?
- Isso também não. Uma coisa mais divertida. Para mudar de casa e para comprar uns móveis é preciso dinheiro, não é?
-É, mas não o temos. Sabes que mais vamos mas é investir na nossa felicidade, enquanto o capital se consome na sua própria fogueira da imbecilidade.
- Já te disse, devo ser antiquada.
Vitor Jorge
sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019
JORNALISMO
Entrei ontem num bar para comprar água. Para minha surpresa, estava ao meu lado o Augusto. Não o via há quarenta e um anos, quando era ainda um honesto colega de farmácia. Emigrou para a América, e desde então, nunca mais tinha sabido nada dele. Aproveitei para perguntar em que trabalhava.
Sou jornalista. E gosto, sabes? Dedico-me às generalidades, mas o que me entusiasma são os crimes violentos. O director do jornal, sabe que tenho essa preferência e sempre que há um crime desse género manda-me lá, e eu agradeço. Devias ver as minhas descrições fantásticas do assassinado, embora eu prefira quando são de uma assassinada, sobretudo quando a encontram em pêlo. Como deves calcular não escrevo assim, faço descrições muito correctas: <<A infeliz jovem encontrava-se totalmente sem roupa>>. O director diz que o meu estilo é o que melhor se adapta ao sangue e ao crime, e eu acho, modestamente, que ele tem razão. A gíria do Augusto, pensei eu, parecia uma caricatura do léxico dele próprio que usava por cá quando se alimentava de Sir Arthur Conan Doyle.
De repente, Augusto olhou o relógio e disse que já era tarde para si, que tinha de ir embora.
Tens comissão sobre os crimes sangrentos?
Felizmente, sim. Tenho um ordenado generoso, pagam-me o triplo para descrever um duplo crime passional, ou faça a cobertura de um seminário sobre triquinose. Sou mesmo bom nisto. E agora vou-me despachar, embarco dentro de meia hora e ainda hoje à chegada tenho a reconstituição do crime numa escola com mais de uma dúzia de jovens mortos. Fica com o meu cartão, para me ligares um dia destes a contar o que tens feito, porque hoje fizeste-me falar como um papagaio e tu estiveste calado como uma porta.
Já sem Augusto, aproximei-me do balcão, pedi uma genebra amarga e bebi lentamente, nunca tinha provado. Na verdade detestei-a, mas bebi heroicamente aquela porcaria. Precisava vomitar imediatamente.
Vitor Jorge
sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019
O TEMPO
Nunca persiga o tempo. Tampouco permita a perseguição. Viva intensamente este tempo que é o seu. Participe activamente neste preciso alumbramento.
Vitor Jorge
AS INICIAIS
MEMÓRIAS DO PASSADO PRESENTE
AS INICIAIS
Certa tarde, encontrei num jardim das imediações desta Cidade da Horta gravadas com uma faca ou um canivete no tronco de um pinheiro, as letras <<L>> e <<D>>, dentro de um coração rudemente desenhado, e pus-me a conjecturar sobre aquelas iniciais e sobre o remoto casal a que se referiam. O traço parecia antigo, como se inumeráveis chuvas o tivessem lavado e voltado a lavar.
Era um jardim abandonado, e aquele edifício em ruínas tinha sido uma casa muito confortável de gente rica. Talvez as iniciais fossem dessa época. Ocorreu-me que o primeiro <<L>> se referia a um Luís e o segundo a uma Dulce. Decidi que teria sido um amor clandestino, ou pelo menos censurado, digamos que entre primos direitos, ou talvez o Luís fosse o filho mais novo da família e a Dulce uma serviçal adolescente e ingénua, que tinha acabado por engravidar e que por isso fora despedida, apesar do desespero de Luís, que certamente ainda não teria aprofundado a questão da existência de classes sociais. Também podia ser que Luís fosse um serviçal e Dulce a menina da casa, claro que nesse caso não teria ficado grávida, porque o serviçal saberia alguma coisa (sobre métodos anticoncepcionais) e teria consciência das penalidades que o esperavam por suposta violação de uma menor de boas famílias.
Havia ainda a hipótese de a inicial repetida representar o cúmulo da solidão, uma espécie de espelho embaciado, ou seja, Luís mais Luís, ou Dulce mais Dulce, isto é, a marca de alguém que desejava companhia mas só se encontrava a si mesmo, ou a si mesma, e que criara uma fantasia para apagar o sofrimento com um prazer hedonista e, no entanto, tão angustiante como costumam ser os prazeres solitários. <<L>> poderia também significar Liberdade e <<D>> Democracia, ideia que excluí de imediato pela constante persistência do contraditório citadino, mas que deveria constar dos princípios de identidade.
A duplicação constituiria uma insistência, uma obseção, ou talvez nostalgia de uma origem contígua, de uma identidade paralela em quem confiar, ao ponto de pô-la dentro do mesmo coração, elíptica forma de designar um só mundo, talvez um só amor?
Como se pode ver, eu estava com uma indigestão de leituras românticas e também de simbologia humana. O primeiro caso era fruto do meu cocktail de romances, o segundo resultava das minhas conversas com um tal Filipe, que estava totalmente invadido pela psicanálise (o seu tio fora um verdadeiro tríptico: médico, psiquiatra e psicanalista em Lisboa) e que, inconformado com os símbolos mais ou menos popularizados por Freud e seus seguidores, acrescentava constantemente outros de sua lavra. Confesso que a insistência dele me aborrecia um pouco, mas algum sedimento me deixava e eu não fazia nada melhor do que aplicá-lo às desprevenidas iniciais do velho pinheiro.
Filipe tinha também outras aptidões. Por exemplo, sabia ler as linhas da mão e ler agoiros e presságios na espuma da cerveja.
Encontrámo-nos uma tarde num bar próximo, e como viu que eu estava a terminar a minha cerveja pediu-me o copo e, seguindo o preceito, rodou-o. Examinou atentamente a escassa espuma.
Não leves muito a sério a minha cervejomancia disse, sorrindo. Nem eu a levo a sério. Simplesmente sou atraído pelos enigmas, pelas adivinhações.
Fiquei mais um pouco a contemplar aquilo que para mim não significava nada.
Sabes o que vejo? Uma mulher e uma árvore.
Assumi calmamente o presságio, porque interpretei que, de qualquer forma, deveria tratar-se da Marina e do pinheiro.
Vitor Jorge
sexta-feira, 25 de janeiro de 2019
GENTE QUE PASSOU
GENTE QUE PASSOU
Até então eu tinha vivido mais ou menos confinado a esta cidade da Horta e talvez por isso gostasse bastante dos percursos pedestres pelas ruas da mesma. Nessas alturas, detinha-me um bom bocado numa esquina qualquer, empenhado exclusivamente em observar a passagem das pessoas. A pressa de uns e a serenidade de outros, tudo constituía para mim uma novidade, uma descoberta. À medida que iam passando pela minha solidão, anotava mentalmente as suas peculiaridades e obsessões. As mulheres seduzidas pelas montras e pelas últimas novidades da moda, paravam fascinadas, certamente retendo na memória cortes, cores, modelos, preços. Depois iam-se embora disparadas, porque estavam sempre atrasadas para chegar a qualquer sítio. Os homens, mais definidos ou obsecados, quando iam comprar alguma coisa, entravam directamente na loja ou na papelaria, perdendo a possibilidade de observar os expositores, em cuja oferta não desperdíçavam o seu tempo.
Abundavam também os estudantes, de ambos os sexos, especialmente nas imediações do antigo liceu. Normalmente circulavam em grupos, com os rapazes a assediar as raparigas, e estas, de braço dado para se sentirem mais fortes, devolviam-lhes os piropos colectivos e as piscadelas de olho individuais com rejeições irónicas e cochichos apócrifos. Os transeuntes adultos às vezes entreolhavam-se, incomodados com essa lição de proveitosa frivolidade, cada um solidário com o aborrecimento do outro e esperando não encontrar de repente um filho seu, ou uma filha, entre aquela trupe de gente incómoda, tão barulhenta quanto alegre.
No meu miradouro, numa esquina qualquer (geralmente escolhia a da rua Cônsul Dabney), fui conhecendo os detalhes e matrizes do comportamento humano, e essa visão panorâmica chegou a transformar-se, para a minha inexperiente natureza, num exercício apaixonante. Nessa época, com doze anos de idade, eu lia bastantes livros. Já tinha abandonado, havia algum tempo, a leitura de De Amicis, Verne e Salgary, e então dedicava-me a estabelecer as diferenças mais elementares entre as personagens de Dostoievski, Dickens ou Victor Hugo. Durante algum tempo estive obsecado em fazer comparações imaginárias entre os mendigos da literatura e os da vida real, mas os pedintes não abundavam por estas paragens. Finalmente descobri um que não tinha uma perna, e certa tarde entretive-me a calcular quanto, aproximadamente, teria arrecadado nessas escassas horas. Comecei por multiplicar por dois, porque mendigava em dois turnos, e depois por trinta, para chegar ao rendimento mensal, e cheguei à surpreendente conclusão de que ganhava mais que o meu pai como funcionário público. Nessa mesma noite comentei isto com o meu pai e, para meu espanto, não morreu de inveja. Apenas observou:
A diferença substancial entre o teu mendigo e eu não está no que ganhamos diariamente ou por mês, mas sim no facto de que eu pelo menos tenho as minhas pernas, com varizes e joanetes, mas tenho-as. Parece-te pouco?
Não, não me parecia pouco. Mas o meu mendigo nem sequer me servia para ser comparado com os de Victor Hugo. Evidentemente éramos ainda um país fascista muito fechado, e pouco desenvolvido, e por cá nem sonhava-mos ainda com obras assombrosas, menos com uma Assembleia Legislativa Regional. Presumia que mais tarde nos iríamos desenvolver, para então gerarmos a nossa mendicidade vernácula.
Passei muitos fins-de-semana, lendo encostado às palmeiras da Praça do Infante que era o meu local preferido. O ar puro e salgado que subia da baía proporcionava-me uma estranha sensação de bem-estar. Aproveitava para respirar a plenos pulmões. Em alguns momentos punha o livro de lado e ficava imóvel, só a ouvir os pássaros, o trote das mulas puxando carroças, e as raras buzinas que dialogavam ali pertinho na avenida marginal. Às vezes, entrava num dos cafés próximos para tomar um lanche. Dava-me bem com o funcionário mais novo, um tal Daniel que se especializara em pregar partidas inocentes a alguns clientes. Havia, por exemplo, um militar septuagenário e reformado, surdo como uma porta, que residia numa residencial próxima. Levantava-se muito cedo e descia para tomar o pequeno almoço no café. O Daniel ia atendê-lo com um sorriso franco e sistematicamente o tenente coronel perguntava-lhe pelas novidades e previsão meteorologica do dia.
Bife panado com batatas fritas _ respondia o brincalhão Daniel.
O outro, muito compenetrado, anunciava:
Então vou buscar o cachecol.
E o surdo pedia:
Por favor, rapaz, quero um chá de limão.
O Daniel perguntava com ar muito sério:
Como é que o quer, senhor tenente? Com espargos ou ração militar?
Bem quentinho _ dizia o outro, agradecido, e dava-lhe uma boa gorjeta, que o Daniel aceitava de imediato sem remorso. Fui várias vezes testemunha desses diálogos estrambólicos e posso garantir que o desempenho dramático do Daniel era de uma perfeição verdadeiramente profissional. Por isso não fiquei surpreendido quando, um ano mais tarde, o vi integrar um grupo de teatro amador.
Pela nobreza da gente que passou. Em sua memória.
Vitor Jorge
Nota:
(Os Miseráveis expõe a flosofia política de Victor Hugo, retratando a desigualdade social e a miséria decorrente, e, por outro lado, o empreendedorismo e o trabalho
desempenhando uma função benéfica para o indivíduo e para a sociedade. Retrata também o conflito na relação com o Estado, seja pela ação arbitrária do policial ou pela atitude do revolucionário
obcecado pela justiça).
sábado, 19 de janeiro de 2019
O LEOPOLDO
O LEOPOLDO
A casa onde nasci tinha os seus códigos e mistérios. Por exemplo, eu reparava que às vezes, quando o meu pai se aproximava da minha mãe e começava a fazer-lhe festinhas furtivas, havia momentos que a minha mãe sorria, devolvia-lhe um beijo e fechavam-se os dois no quarto. Mas outras vezes, quando o meu pai começava com as suas meiguices, a minha mãe ficava séria e só lhe dizia:
Hoje não posso, meu velho. Chegou o Leopoldo.
Para mim, essa resposta era um enigma, porque eu tinha estado a manhã toda em casa e não tinha chegado ninguém : nem da família do Leopoldo, nem de nenhuma outra família. Além disso não conhecia ninguém com aquele nome. Só muitos anos mais tarde é que soube que Leopoldo era o nome do rei Belga, Leopoldo II, um dos reis mais sanguinários de todos os tempos, pelas atrocidades cometidas no ex-Congo Belga. Ou seja, a minha mãe estava a avisar o meu pai (em código, claro, devido à minha indiscreta presença) que estava com o período e, consequentemente, não estava disponível para o erotismo. Outro mistério era a porta de entrada para o rés-do-chão. Eu estava proibido de tentar abri-la; bem podiam ter poupado esta proibição, já que as "caves" me provocavam um medo irracional e nunca me propus abri-la.
Entre as mais belas recordações de Pontas Negras estão os meus despertares, de que normalmente se encarregavam os inquilinos da figueira. Quando a minha mãe me gritava da cozinha para que eu me levantasse e fosse tomar o pequeno almoço, já muito antes os pássaros se tinham encarregado de me acordar.
Alguns tinham perdido o medo, e até a prudência, entravam no quarto e aproximavam-se da minha cama, sabendo que eu sempre lhes reservava um pequeno almoço de migalhas. E havia uma visita adicional sobre a qual nunca falei à minha mãe: um rato minúsculo, um ratinho que, quando eu abria os olhos, estava quase sempre junto à minha cama, à espera de pedacinhos de queijo de cabra, sobras da dose que me correspondia na dieta especial para compensar o meu défice de proteínas.
É óbvio que o ratinho e eu tivemos nessa altura uma recarga proteica nada desprezível.
Hoje, sem pais, nem Leopoldo, e
como na vida tudo se altera e modifica, é o vizinho defronte com sofisticado e ensurdecedor equipamento de som instalado no seu carro-mota que me controla o despertar, e noite dentro, o merecido descanço.
Vitor Jorge